Monday, January 17, 2011

SOBRE EUGÉNIO LISBOA

Por Carlos Adrião Rodrigues

Como dizia Rilke, a nossa pátria é a nossa juventude. Nem me lembro quando conheci o Eugénio. Provavelmente foi numa livraria, apresentados por amigo comum. Mas passámos os melhores anos da nossa vida, desde aí, em projectos comuns, na Lourenço Marques colonial ou provinciana ultramarina, e não temos nenhum de que nos possamos envergonhar. Ele foi a Associação dos Naturais e a sua (e nossa) Voz de Moçambique, foi o cineclube e a Objectiva, foi a TRIBUNA (1ª fase), foi a participação nas pontuais campanhas oposicionistas, foi o teatro de amadores (TALM), foi o Núcleo de Arte, foram os julgamentos políticos e o testemunho imprescindível dos intelectuais, como o Eugénio. Tudo isto foram batalhas em que investimos e travámos com muitas dificuldades, mas que sempre, sempre vencemos. Claro que não éramos sós, havia outros tão bons ou melhores que nós: o RUI KNOPFLI, esse magnifico poeta, autor, entre outros livros do premonitório “ O País dos Outros, hoje um tanto esquecido mas que havemos de ressuscitar, o Homero Branco, um dos melhores dirigentes associativos que conheci, capaz de sacrificar os seus interesses pessoais ao bem comum, o Gouveia e Lemos um dos melhores jornalistas portugueses, o Fernando Magalhães, outro jornalista de mão cheia, o Armando Morais e o seu idealismo e crença na humanidade e paixão pelo cinema que o levava a passar os fins de semana a mostrar, em nome do cine clube, à miudagem pluriracial dos subúrbios as maravilhas do Bucha e Estica, do Charlot e do Buster Keaton, o João Afonso dos Santos advogado dos melhores, defensor de presos políticos, autor de artigos notáveis (um deles, por ocasião da campanha de Humberto Delgado, valeu-lhe a perda de uma avença profissional), cineclubista de gema e, ainda por cima, irmão do ZECA, o Jorge Pais, um intelectual sério que seria um importante historiador de Moçambique se a morte o não levasse cedo de mais, o Rui Baltazar, grande advogado, colaborador activo de todos os projectos que implicavam a descolonização de Moçambique.
Toda esta gente e muita outra, como o Luís Bernardo Honwana, autor ajudado a lançar por uma magnifica critica do Eugénio Lisboa, o José Craveirinha, amigo de todos os dias e de todas as lutas, o Abner Mutemba preso politico, o promotor do português com sotaque africano na emissora A do ainda Rádio Clube de Moçambique e um dos fundadores da Rádio Moçambique, o Domingos Arouca, o já saudoso Malangatana e tantos outros que quase me atreveria a dizer o Moçambique inteiro, excepto os que viviam pendurados no orçamento, sabiam, de ciência certa, que Moçambique não podia continuar, por muito mais tempo, a ser uma colónia, mesmo disfarçada de província ultramarina ou de pseudo-estado.
Acreditávamos que a massa critica da população era a negra e que em relação a ela muitas injustiças deviam ser reparadas rapidamente, como seja o acesso ao ensino, à cultura e à saúde,
o desenvolvimento económico equilibrado e justo; e que a ela, à maioria, devia ser devolvido o poder político, em beneficio de todos. Aquela era a nossa pátria, na concepção de Rilke, porque a ela demos a nossa juventude.
A Lisboa ficou a dever-se a grande luta por uma cultura moçambicana que conjugasse a estatuária dos macondes, a ingénua poesia do seu povo e dos seus poetas, a sensualidade de danças e cantares, a beleza do seu artesanato, a força dos prosadores que começavam a surgir, com a universalidade da grande cultura, através da utilização do intermediário estético que era a língua portuguesa, paixão maior do Eugénio Lisboa. Ele sabia que a língua portuguesa era o principal factor capaz de fazer do Moçambique colonial um país e uma nação.
Este grande objectivo desenvolvia-se em pequenos episódios, hoje atirados para as brumas da memória, mas que convêm relembrar quando a memória nos ajude.
Lembro-me do entusiasmo do Lisboa quando, nas reuniões preliminares ao lançamento da Tribuna, o Gouveia Lemos definiu o jornal como devendo ter como público alvo o moçambicano de todas as raças, cortando com a prática de outros jornais de serem jornais de brancos para brancos. Para tal era necessário dispor de jornalistas negros que canalizassem para o jornal os subúrbios e os seus problemas, as injustiças laborais, a cultura africana e, também, os “fait-divers” do dia a dia do povo e o desporto que se fazia, não nos campos dos chamados grandes, nos campos mais pobrezitos da Mafalala e do Alegria, onde nasciam os Matateu, Vicente e Eusébio.Lisboa aderiu de imediato à ideia, sugerindo nomes, definindo estratégias e entusiasmando o Craveirinha e pondo em evidente cheque a acusação que por vezes lhe faziam de elitista. Claro que esta ideia tinha um obstáculo maior-a censura, Mas, apesar dela, a Tribuna foi pioneira e a sua visão teve continuidade no Diário de Moçambique, na VOZ AFRICANA e em outros jornais e revistas, como a TEMPO.

Lisboa esteve presente, como testemunha, em todos os julgamentos de cariz político. O primeiro foi no do poeta Virgílio de Lemos. O julgamento era no tribunal comum, por, apesar de ser politico, o crime porque era acusado não caber na competência dos tribunais militares. O crime de que Virgílio Lemos era acusado era o de ofensas à bandeira nacional, por no seu livro “Poemas do Tempo Presente” se ter referido à bandeira nacional como a “capulana verde e vermelha”, O depoimento do Lisboa sobre o papel dos símbolos na poesia, ilustrado com inúmeros exemplos eruditos da poesia mundial e portuguesa, a sua dissertação sobre a importância dos símbolos populares na literatura e a ligação que estabeleciam entre o sentimento do povo e o seu significado, destruíram completamente a acusação do Ministério Público. O depoimento do Lisboa, juntamente com o do Craveirinha, que enfatizou a dignidade da capulana como traje da mulher africana, dignidade que a acusação contra o poeta tentava destruir e o de Afonso Ribeiro que defendeu a legitimidade literária do símbolo e, com alguma ironia, contou que nas suas deambulações profissionais por Moçambique, muitas vezes constatara que quando alta entidade, ministro ou governador – geral, visitava cidades ou vilas do interior, os administradores distribuíam às mulheres capulanas verdes e vermelhas para irem receber as excelências. Perante isto o Juiz Mota fez uma brilhante sentença e absolveu o poeta. Este processo teve um desfecho original que, já agora, vou contar. O processo subiu à `Relação de Lourenço Marques e mereceu nova absolvição, de onde foi, em recurso para o STJ, em Lisboa, onde o poeta foi, de novo, absolvido.Com tamanha unidade jurisprudencial resolvi escrever à PIDE, que tinha apreendido a edição do livro, solicitando a respectiva devolução., obtive resposta dias depois dizendo que não podiam fazer a devolução porque os exemplares se tinham extraviado (estes nossos serviços públicos !) Sem grande esperança, escrevi nova carta à PIDE dizendo que se tinham perdido os livros, o que era difícil de prever dada a proverbial eficiência da organização, o melhor seria indemnizar o autor e mandava-lhe a conta, que rondava os 5 contos, na altura, era o principio da década de 1960, bastante dinheiro. Qual não foi o meu espanto quando, na volta do correio, recebi uma carta com cheque pedido, em nome do poeta. Deve ser o único caso em que a PIDE pagou livros apreendidos. Nós devíamos ter guardado o cheque, mas o Virgílio, preso havia mais de um ano à ordem do processo político que corria no tribunal militar, estava mal de massas e decidiu gastar o dinheiro.
O depoimento do Lisboa nos julgamentos do Craveirinha, a favor deste, foram notáveis, mas o proferido no 2º julgamento teve um efeito que, suponho, ele ainda hoje desconhece.
O Craveirinha e seus co-réus, entre os quais se encontrava o recentemente falecido pintor Malangatana Valente, foram julgados duas vezes por força da anulação do primeiro julgamento pelo Supremo Tribunal Militar, em Lisboa.
O primeiro julgamento foi um julgamento sério, presidido por juízes, tanto os militares como o civil sérios e competentes. O juiz auditor, civil, era o Dr. Martins da Fonseca que durante a sua prestação nos tribunais cíveis de Lourenço Marques deixou um rasto de seriedade, isenção e sabedoria profissional que lhe mereceram o reconhecimento da população e a admiração unânime, pela sua excelência, de todo o pessoal do foro, o que é difícil. Neste julgamento, todos os réus foram absolvidos com excepção do Joel, membro confesso da Frelimo, infiltrado no Sul do Save para formar o 4º comando operacional da Frelimo e recrutar aderentes, Não podia ser absolvido, em face das leis aplicáveis, mas a sentença foi moderada e equilibrada-4 anos, muito inferior às que estavam a ser aplicadas em Angola em casos semelhantes, mas muito bem fundamentada, com uma profunda análise da personalidade do Joel e relevando muito inteligentemente a sua preferência por uma solução pacifica para o conflito e por um acordo com Portugal. Foi assassinado pela PIDE na cadeia da Machava
O 2º julgamento, provocada por uma anulação mal fundamentada do primeiro, foi uma palhaçada de juízes submissos ao poder politico, Uma semana antes do inicio do julgamento já eu tinha em meu poder uma relação das penas que iam ser aplicadas e que foram tal e qual, apesar de eu as ter lido aos juízes durante as alegações, Mesmo assim não mudaram um jota, Não tiveram vergonha. Tinham-me sido fornecidas pelo DR, Azevedo Neves, médico da policia com quem um inspector da PIDE se tinha aberto.
Os juízes eram mais que suspeitos de parcialidade: o presidente era um oficial na reserva a quem constava tinham sido prometidas inúmeras benesses pela condenação de parte dos réus, com o que já se contentava a PIDE (depois, parece, deram-lhe menos que o prometido, mas é sabido que Roma não paga, pelo menos na totalidade, aos traidores), o juiz auditor, escolhido para o caso, era dos piores magistrados que passaram pela comarca de L.M. ; sobre o juiz militar asa tínhamos pouca informação; sabíamos ser um homem de direita, muito preocupado com o problema ultramarino e a sua solução.
Durante o julgamento, o juiz asa teve um comportamento muito interessado, ao contrário dos outros que queriam era despachar; interrogava com frequência as testemunhas de defesa, sem hostilidade, e procurando sempre averiguar o factor das ligações ás raízes portuguesas da produção cultural dos réus. Esta postura deu pano para mangas sobre o depoimento do Eugénio Lisboa que realçara que não só o réu que o tinha oferecido, o Craveirinha, era um grande amante e cultor da língua portuguesa, como todos os réus ali presentes tratavam o português como língua materna e tinham uma cultura determinada por factores africanos e portugueses o que fazia de todos eles, no longo desenvolvimento do processo histórico, mais aliados de Portugal do que seus inimigos; por isso ele considerava uma estupidez e total falha de espírito democrático perseguir judicialmente esta gente por divergências conjunturais, que no futuro não significariam nada. Como se provou, digo eu agora, quando há dias fomos ouvir uma missa por alma do Malangatana, um dos réus, no mosteiro dos Jerónimos, ladeados pelos túmulos do Camões e do Vasco da Gama e com o corpo do falecido presente
Esta tese calou fundo no espírito do juiz asa militar, que sobre ela interrogou longamente o Lisboa, interrogatório que a certa altura, mais parecia uma cordata troca de impressões, o que levou presidente do tribunal a interrompe~la dizendo que aquilo já não tinha interesse para o processo e que era preciso era andar depressa, com o que demonstrou a sua estupidez. O juiz asa deu então por concluída a inquirição, sintetizando-a, dizendo algo como isto: o que osr engenheiro quer dizer é que o governo está dando tiros nos pés quando persegue criminalmente este tipo de gente, ao que o Lisboa respondeu: Isso e muito mais.
Minha mulher, Maria Joaquina, seguia com muito interesse estes julgamentos, assistindo a todas as audiências e comentando-as depois comigo. Um dia, ao almoço, disse-me: Vocês já deram a volta ao juiz asa e, perante meu ar interrogativo, explicou Vi-o ontem na missa e estava angustiado; punha a cabeça entre mãos, como a espremer inspiração e ás vezes estendia as mãos para o altar como a pedir ajuda e a a sua face transpirava angústia. Aquilo era por causa do julgamento e vocês deram-lhe a volta.
Fiquei na dúvida se ela teria razão, mas quando foi lida a sentença ela vinha só por maioria, o que queria dizer que o juiz asa militar tinha votado contra. Isto quer também dizer que, no conjunto dos dois julgamentos a que foram submetidos os réus condenados foram-no por 2 juízes e absolvidos por 4.
Em outra ocasião, a “VOZ de MOÇAMBIQUE”, jornal em que Lisboa colaborava activamente, fazendo parte da sua comissão redactorial e sendo um dos orientadores da página literária, entrou em conflito grave com o Banco Nacional Ultramarino, potentado económico-financeiro, emissor da moeda local e que, na altura, tinha já estendido as suas garras ao “NOTICIAS” de LM, fazendo dele um porta-voz do governo.
Foi o caso que, quando da inauguração da nova sede faustosa do banco, a VOZ de MOÇAMBIQUE publicou um número com a fotografia da sede na capa e uma legenda, sacada de Winston Churchil, dizendo “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”; no interior, um magnifico artigo do Fernando Magalhães, gozando os luxos da sede, os mármores de Carrara, os tafetás luxuosos dos cortinados, etc.Os manda chuva políticos do banco não gostaram da graça e deram ordem ao Noticias, em cujas oficinas a VM era impressa, para a não imprimirem mais e fez pressão sobre as tipografias de LM, todas elas dependentes do banco para as suas actividades comerciais para não aceitarem a impressão do jornal.
Isto deu origem a uma forte reacção da nossa parte, com total empenhamento do Eugénio Lisboa, que não só colaborou activamente em toda a prosa que produzimos sobre o assunto (e foram cartas para o Noticias e para o Governador Geral), como alertou intelectuais portugueses e estrangeiros, seus conhecidos, para o incrível comportamento de um banco contra a liberdade de imprensa, o que originou várias manifestações de solidariedade. Ainda conseguimos publicar um número composto numa máquina IBM de escritório, por uma das melhores dactilógrafas do mundo, a Adelaide, e impressa numa máquina de offset também de escritório, com capa do pintor António Quadros, e que se esgotou, no qual denunciámos claramente o procedimento do banco. Na carta que escrevemos ao governador dávamos conta da situação, da impossibilidade em que estávamos, por pressão do BNU, de encontrar tipografia e pedindo-lhe que autorizasse que a impressão do jornal fosse feita na Imprensa Nacional. Recebemos resposta pouco depois dizendo que não podia atender o nosso pedido porque a IN só podia imprimir publicações oficiais. Estávamos à espera de uma resposta no género, porque logo retorquimos, em nova carta, dizendo que Sua Excelência devia estar equivocado porque era lá na IN que se imprimia o jornal UNIÃO, órgão local da União Nacional. Suponho que foi isto que deu a volta ao texto, porque pouco depois recebemos uma missiva da Tipografia Globo dizendo da sua disponibilidade para imprimir a VM. Quanto ao Governador nunca respondeu à segunda carta.
Mas porque conto eu estes episódios, em homenagem ao Eugénio Lisboa? Exactamente porque as criticas que alguns lhe faziam era precisamente a de ele entender que a obra de arte tinha um valor intrínseco que não dependia de uma mensagem social explícita, porque toda a arte era em si mesma progressista. Acusavam-no de ser admirador e promotor de escritores como o Régio e o Montherlant, que não passavam a vida a saudar os amanhãs que, segundo eles, cantavam. Mas o Régio do “não vou por aí” e o Montherlant verberando o colonialismo, não eram suficientemente progressistas para merecerem a admiração de alguém. Eram poucos os que assim pensavam, mas faziam muito barulho. Todavia os que acreditavam que a arte tinha um valor especifico que se não compadecia com espartilhos ideológicos, eram os que, em sociedade, tomavam as posições mais corajosas e coerentes em defesa da liberdade e da justiça e faziam reflectir esses princípios nas suas produções artísticas, cuidando, porem, de não as transformar em panfletos.

Wednesday, November 3, 2010

O PRIMEIRO DIA

O dia 24 de Junho de 1975, em Moçambique, estava magnífico. O sol africano brilhava num céu azul, esfarrapado, aqui e ali, por nuvens suaves e brancas. O mar, também ele muito azul, confundia-se, nas lonjuras, com o céu. Uma brisa tépida e a temperatura agradável tornavam a vida confortável. No dia seguinte era a independência de Moçambique e o primeiro dia do Banco de Moçambique (BM), enquanto banco central. Tinha-se feito um óptimo acordo e Moçambique recebia o activo e passivo do BNU no território da antiga colónia. Mas, no início, as coisas não começaram tão bem, porque a delegação do BNU vinha com a peregrina ideia que os trabalhadores do banco em Moçambique se transferiam para o BM e se desvinculavam do BNU. Um tal sistema, num período conturbado como aquele, em que as pessoas tinham escolhas gravíssimas a fazer, quer quanto à nacionalidade quer quanto a continuarem a viver em Moçambique, determinaria o êxodo dos funcionários do banco, a começar pelos mais qualificados; além do que era uma violência pouco democrática transferir o pessoal, sem a sua anuência. Assim, rapidamente, eu, o Dr. Pereira Leite e o governador do BM, Dr. Alberto Cassimo definimos uma contraproposta que o Cassimo verbalizou no dia seguinte: não queríamos ninguém obrigado no BM; queríamos um acordo de cooperação, pelo qual o pessoal, que não quisesse integrar-se no BM, ficaria a prestar serviço por tempo determinado, findo o qual teria direito a ingressar nos quadros do BNU, em Portugal. Diga-se, em abono da verdade, que muitos dos elementos da delegação do BNU apoiaram a nossa posição e no-lo fizeram saber.
Acontece que um auto intitulado delegado sindical do BNU, integrado na sua delegação, veio ter comigo e me interpelou dizendo: “Como é que, você, um democrata, se põe a defender colonos exploradores? “ Olhei o homenzinho com algum desprezo e perguntei-lhe: -“ Quantos são os trabalhadores do BNU, em Portugal?”. Três mil e tal, respondeu. Pois aqui, em Moçambique, são pouco mais de dois mil, respondi, e os lucros do banco são todos gerados em Moçambique. Já vê que a contabilidade de quem explora quem não pode ser feita com a simplicidade do seu raciocínio! O homem calou-se, mas o problema continuava, porque a delegação do BNU insistia na sua posição.
Decidimos pôr o presidente Samora Machel ao corrente da situação e fazer-lhe ver que assim não teria um banco central mas uma manta de retalhos. O pessoal do banco era extremamente competente, mas não tinha experiência do exercício das funções de banco central, porque as que o BNU podia exercer, não o fazia pela delegação de Moçambique, mas pela sede, em Lisboa, ou Moçambique não fosse uma colónia. Todavia tínhamos a certeza que, com aquele pessoal, mobilizado e competente, facilmente colmataríamos quaisquer dificuldades que surgissem. Por outro lado o pessoal tinha-nos feito saber que estava connosco e apoiava a nossa posição. Tudo isto o Cassimo e o Pereira Leite expuseram ao presidente que rapidamente percebeu a situação e prometeu resolve-la; ele considerava fundamental ter um banco central a funcionar bem e, tanto quanto possível, com a prata da casa. Por isso, no dia seguinte, telefonou ao PM de Portugal, Vasco Gonçalves, e, dois dias depois, a delegação do BNU estava a negociar o acordo de cooperação. Este acordo possibilitou que Moçambique tivesse um banco central forte e eficiente que não só permitiu ultrapassar as grandes dificuldades de uma independência obtida em condições económicas difíceis como desenvolver outros laços de cooperação com Portugal, como adiante veremos. Por outro lado o pessoal ficou mobilizado com a nossa atitude e viu que podia confiar no futuro governo do BM.

Como dissemos, o dia 24 de Junho estava magnífico, prometia um 25 glorioso e eu, o Cassimo e o restante pessoal do banco passámos o santo dia a cuidar de pormenores, para que tudo corresse bem. Lembro-me que a última coisa que fizemos foi verificar o funcionamento do anúncio luminoso onde Banco de Moçambique substituía Banco Nacional Ultramarino. Depois senti fome e disse ao Cassimo que ia jantar a casa; ele respondeu-me que também tinha fome, mas não sabia onde ia jantar; naturalmente convidei-o para jantar comigo e avisei a minha mulher que teríamos companhia de luxo: o governador do banco de Moçambique.
Pelas 19 horas partimos os dois. O caminho para minha casa podia fazer-se pela marginal, e foi o que escolhemos. Ao chegarmos à rotunda junto à doca dos pescadores, demos com um espectáculo insólito: um soldado da Frelimo, de kalache em punho, impedia a continuação da marcha dos veículos, fazendo-os voltar para trás, nem sequer os deixando fazer a manobra pela rotunda, pelo que tinham que fazer a inversão de marcha no meio da avenida, o que causava forte confusão. O Cassimo foi falar com ele e voltou pouco depois, dizendo-me que o soldado alegava, como justificação, que tinha por ali passado, num carro e aos tiros um branco e perguntava-me se eu achava aquilo possível; respondi-lhe que só se o homem fosse louco e que provavelmente o soldado confundira tiros com algum escape roto; mas que ele devia dizer ao soldado que deixasse os carros darem a volta pela rotunda, quando não tudo continuaria complicado. O soldado assim fez e, a nós, deixou-nos passar. Pelo caminho passávamos pelo quartel-general e o Cassimo deu ordem ao motorista para pararmos ali, explicando-me que ia sugerir que substituíssem o guerrilheiro que estava a criar aquela confusão na rotunda que, segundo ele ainda daria sarilhos. Concordei e lá fomos os dois. Mas quando chegámos ao portão, a sentinela não percebeu nada do que o Cassimo lhe disse, sucessivamente, em diversas línguas. Ele não falava nem português, nem inglês, nem a língua nativa do Cassimo. Ficámos ali, naquele impasse de incomunicabilidade, que a sentinela resolveu rapidamente. Vendo um negro a falar e um branco calado, concluiu que o branco ia preso, de modo que pegou-me pelo braço e preparava-se para me levar preso para dentro do edifício. O Cassimo percebeu logo e começou aos gritos a gesticular, para o demover das intenções; a sentinela não fez mais nada: prendeu também o Cassimo e levou-nos os dois, pelos braços, por um corredor fora, ao encontro de um comandante. Este era amigo do Cassimo e a nossa detenção acabou ali. Mas não acabou o problema comunicacional em Moçambique, ilustrado com este incidente caricato.
Mas como a minha mulher tinha feito um óptimo jantar, acabámos bem dispostos a noite, confiados num futuro brilhante para aquele fabuloso país.


E OS DIAS SEGUINTES

Mas o futuro não se apresentava fácil. O BM abria as suas portas com a obrigação de gerir as disponibilidades externas do país e estas eram de 150.000 contos (€750.000), o que equivalia, mais ou menos a uma dona de casa ter cerca de 25 escudos (€ 0,13) para sustentar uma família de 4 pessoas durante uma semana (estas equivalências não são “cientificas”, mas dão uma ideia, em termos actuais das dificuldades que sentíamos) Portanto a nossa mais urgente tarefa era desencantar divisas para sustentar as necessárias importações. Tínhamos ainda nos cofres do banco uma partida de pouco mais de 1 tonelada de ouro, proveniente de vendas antigas dos garimpeiros ao BNU, quando a exploração das areias auríferas, dos rios do norte de Moçambique, era rentável e que tinha ficado para o BM, nos termos do acordo celebrado; mas não queríamos começar a vende-la.
Felizmente o governo provisório de Moçambique (o que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 e que se não deve confundir com o de transição, que foi o que se seguiu ao acordo de Lusaca, em 7 de Setembro do mesmo ano), que teve uma gestão muito vantajosa para Moçambique, nem sempre reconhecida, conseguira travar o envio do ouro dos mineiros moçambicanos para a “Metrópole”, obtido nos termos de um acordo entre Portugal e a África do Sul. Este acordo estipulava que, do salário dos mineiros, metade lhes era pago na África do Sul e a outra metade era enviada, em rands, para Moçambique, cujas autoridades pagavam o seu contravalor, em escudos, à pessoa que o mineiro indicava. Estipulava mais que quando o envio de rands atingia um determinado montante, Moçambique tinha a opção de trocar esse montante por ouro, primeiro a 28 dólares, depois a 32 a onça. Simplesmente, Moçambique vivia uma constante fome de divisas e quando atingia, contabilisticamente, o montante de rands provenientes dos salários dos mineiros necessário para comprar uma partida de ouro, já tinha gasto esses rands em outras importações e não tinha disponibilidades para pagar à África do Sul o ouro que podíamos comprar. Salazar resolveu o problema, dando ordem ao Banco de Portugal (BP) para fornecer os rands necessários e o ouro seguia direitinho para os cofres do BP. Foi uma partida desse ouro que o governo provisório impediu que viesse para Lisboa. Mas grande parte do ouro detido por Portugal teve esta origem, foi comprado a $28 e 32 e tem hoje o valor que tem, mesmo assim inferior à cotação de mercado.
Em Dezembro de 1971,na sequência da desvalorização constante do dólar e do progressivo aumento do deficit comercial americano, o Presidente Nixon, dos Estados Unidos, determina a inconvertibilidade total do dólar em ouro, pondo assim termo ao sistema de Bretton Woods. Sublinhe-se, todavia, que, desde 1968 o dólar já era inconvertível, excepto para operações entre bancos centrais. O ouro passa a ser uma mercadoria como qualquer outra, sujeita às flutuações do mercado, mas um mercado altamente controlado, tanto pela República da África do Sul como pela União Soviética, como por países detentores de grandes reservas de ouro, embora menores produtores, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França. Em 1973 começa a primeira crise petrolífera e o preço do crude multiplica-se por 4.
Daqui e de outras condicionantes que não vêm ao caso, o ouro subiu rapidamente no mercado livre, e, no segundo semestre de 1975 já estava bem acima dos $100 a onça.
Havia, portanto, uma proposta a fazer aos sul-africanos: que eles vendessem a partida de ouro a que tínhamos direito, se cobrassem do seu valor a $28 a onça e depositassem a diferença, em dólares, a nosso favor. Não acreditámos muito que o governo sul-africano aceitasse a proposta, mas a verdade é que recebemos uma comunicação do “Reserve Bank of South Africa” dando a sua anuência e propondo-se fazer a operação. Eu e o Cassimo discutimos o assunto e concluímos que não era altura para desconfianças e que devíamos dar o nosso acordo à proposta sul-africana e encarregar o Reserve Bank da operação, que ele concluiu rapidamente, vendendo o ouro ao melhor preço, cobrando-se estritamente do que lhe era devido nos termos do acordo, não levando qualquer comissão pela sua actuação e depositando, à ordem do BM alguns milhões de dólares.Na sequencia deste processo,de acordo com a cotação do ouro no mercado internacional, chegámos a vender ouro a mais de 700 dólares a onça, que nos custava32 dólares tambem a onça.


O CAMINHO DE N'KOMATI

Samora Machel não se apercebeu, de imediato, que estes comportamentos de boa vontade da África do Sul para com Moçambique independente (já se tinham manifestado anteriormente com a recusa da África do Sul em intervir a favor da tentativa de golpe de estado do 7 de Setembro), tinha muito a ver com a transformação da sociedade “bóer” que evoluía de uma comunidade basicamente agrícola para uma comunidade de base industrial e que começava a mostrar fracturas entre os “verligts” (iluminados) e os “verkampts” (conservadores), fracturas essas que atingiam já o coração do “Brotherbond” e iriam ter uma forte influência na futura evolução da África austral, no fim do “apartheid” e na transformação da África do Sul numa república democrática, com governo de maioria.
Mas a atitude sul-africana causou alguma curiosidade a Samora Machel, que numa primeira impressão a atribuiu ao medo dos sul-africanos da independência de Moçambique, mas resolveu averiguar melhor as razões daquele comportamento. Entretanto o governo sul-africano fazia saber ao BM e ao governo de Moçambique que o acordo sobre os mineiros era com Portugal e, portanto, tinha que ser dado como terminado ou renegociado com Moçambique.
Em face disto, Samora entendeu que havia que realizar um encontro secreto, na Suazilândia, entre os governos sul-africano e moçambicano, a nível ministerial. O encontro realizou-se, cada uma das delegações era chefiada pelo ministro dos negócios estrangeiros (da parte moçambicana o Joaquim Chissano) e composta de vários ministros e dos governadores dos bancos centrais dos dois países
Fazia parte da delegação moçambicana o ministro da indústria, que no tempo colonial tinha sido funcionário do Banco de Fomento em Moçambique; no período pós-25 de Abril. Tinha tentado encaixar-se nos quadros metropolitanos do referido banco, mas como o não tivesse conseguido se converteu num ultra-marxista militante. Como tal usou da palavra para dar barraca e acusou o Reserve Bank sul-africano de, na operação ouro atrás descrita ter vendido o ouro abaixo do preço de mercado, ter prejudicado Moçambique e feito um proveitoso negócio. Isto deu origem a uma violenta réplica do presidente do Reserve Bank, que demonstrou com documentos a falsidade do que o ministro afirmara e dizendo que não lhe admitia aquele tipo de insinuações. O Chissano, aflito com a situação, pediu uma interrupção, reuniu-se com o Cassimo e por ele soube que os sul-africanos tinham razão e mandou o ministro da indústria de imediata volta a Maputo, dando, no recomeço da reunião uma desculpa para a sua ausência, que todos perceberam ser diplomática e pouco verdadeira. Mas a questão do ouro ficou inquinada e a delegação sul-africana fez saber que havia que, em curto prazo, revogar o acordo ou que, senão, a África do Sul o faria unilateralmente.
As coisas ficaram assim em suspenso, mas, entretanto venceu-se o direito de Moçambique a mais uma partida de ouro, a operação decorreu normalmente, por intermédio do Reserve Bank, e as reservas de Moçambique aumentaram em mais uns largos milhões de contos.
Assim foi possível assumir compromissos internacionais e cumpri-los pontualmente e a confiança no BM aumentou, começando nós a receber propostas de concessão de créditos e de níveis de descobertos de grandes bancos internacionais que, como o City Bank, nos ofereceram taxas mais favoráveis. Moçambique se conseguisse, pelo menos, manter os seus níveis de produção interna, poderia ter passado o período pós-independência sem grandes dificuldades e sem a escassez de bens de consumo que se veio a verificar.
Em 24 de Julho de 1974, Samora Machel, cheio de pressa em cumprir os seus compromissos com os apoiastes da Frelimo na sua luta, tinha nacionalizado as casas, extinto os advogados e feito mais uma série de disparates que só serviram para destabilizar as pessoas e a situação. Eu assisti ao discurso, no estádio da Machava, na companhia de um sobrinho, mas não percebi nada do que disse Samora Machel, porque a aparelhagem sonora, herdada do colonialismo, era péssima. Quando chegámos a casa, íamos, eu e o sobrinho, sorridentes. - Vens muito bem disposto, disse a minha mulher. – Sim, aquilo esteve giro, retorqui. – Podia ter estado giro, respondeu minha mulher, mas acabaram-te com a profissão. Advogados acabaram, ponto final!
Ela tinha ouvido o discurso pela rádio e estava certa do que dizia. Fiquei estupefacto, mas pensei que era medida anunciada que todavia levaria algum tempo a ser executada. Também era medida que me não afectava muito, porque estava no banco, já não advogava, mas mantinha o escritório aberto para atender os clientes que vinham saber notícias dos processos, receber improváveis substabelecimentos e, os mais sérios, pagar algumas contas atrasadas. De tudo tratava o meu fiel e inteligente secretário, Simião Obadias Sitoe que todos os dias me dava conta do que se passava e recebia instruções sobre como resolver casos mais complicados; o contacto era fácil, visto que o meu escritório era no Prédio Coimbra, mesmo ao lado do BM.
Mas enganei-me. No dia seguinte, às 8 horas da manhã, telefonava-me o Simião a dizer que tinha lá três guerrilheiros, de kalache em punho, a exigir-lhe a entrega das chaves do escritório, ao que respondeu que só entregava com minha autorização e pareceu-me disposto a resistir pela força caso eu não lha desse. Disse-lhe que tivesse juízo, entregasse um jogo (tínhamos vários, claro) de chaves e ao fim da tarde o pessoal passasse por minha casa para discutirmos o futuro deles.
Por essa altura eu era juiz substituto numa vara do tribunal, pelo que resolvi passar por lá para ver os efeitos do discurso de Machel. Quando cheguei estava um mulato aos berros, chamando corrupta a toda a gente, juízes incluídos, e exigindo que o seu processo fosse ali mesmo resolvido, a seu favor, claro, e sem contraditório. Era um processo-crime, de pequena importância, ainda sem julgamento marcado. Disse-lhe que tivesse calma, que o julgamento aguardava umas diligências para ser marcado e que fosse para casa. Mas o homem insistia na sua absolvição imediata e sem formalidades e em insultar toda a gente. De modo que fiz uma coisa que nunca tinha feito a ninguém, nem voltei a fazer: prendi o homem e mandei telefonar para a policia para o ir buscar e marcando logo um julgamento sumário. Medida muito bem recebida pelo pessoal, que imediatamente o prendeu numa sala e o mandou calar o bico ao que ele obedeceu prontamente. Veio a polícia que o levou. No dia seguinte telefonou-me o Raposo Pereira, meu antigo colega e então chefe da policia, perguntando-me se eu aceitava desculpas do homem. Disse-lhe que sim desde que fossem directas, sem adversativas e na frente de todo o pessoal do tribunal. Assim se fez e o homem foi em paz. Devia ser um esbirro, encarregado de testar os efeitos do discurso.
Voltemos, porém, ao que interessa, isto é, as negociações com a RSA sobre o acordo dos mineiros.

Rapidamente, suponho que por insistência dos sul-africanos, se marcou nova reunião, desta vez em Maputo, na sede do banco. A delegação de Moçambique era liderada pelo próprio Samora Machel e a da RSA pelo governador do “ Reserve Bank “, em representação do PR da RSA.
Cerca de um mês antes da reunião tanto a Frelimo como Samora Machel, que se tinha apercebido bem da importância daquelas negociações, tanto a nível das necessidades imediatas de divisas como ao de abrir, sem compromissos políticos fundamentais, um corredor de negociações com os sul-africanos, começaram a preparar a reunião; nesse contexto, o Cassimo, a sugestão de Samora Machel, contactou-me pedindo-me que elaborasse um parecer jurídico que resolvesse o problema do tratado Portugal/RSA, de modo favorável a Moçambique, mas sem compromissos. Eu tinha já pensado no assunto e tinha uma ideia sobre como resolve-lo; de modo que respondi ao Cassimo que tinha muito gosto, mas que precisava de ter acesso aos meus livros, fechados pela Frelimo no escritório. O Cassimo disse-me que isso devia ser impossível, porque aquilo tinha sido uma medida de princípio do governo e que eles não deviam querer abrir excepções. Disse-lhe que tinha muita pena, mas que sem livros, não podia haver parecer. No dia seguinte apareceu-me com uma autorização do governo para ter acesso ao escritório, dizendo que devia contactar a polícia para colher as chaves; respondi-lhe que não era necessário porque tinha diversos jogos de chaves e só tinha entregue um. O Cassimo riu-se e disse: -Vocês são tramados! E desatámos os dois a rir!
Lá fui buscar os livros à minha vasta e bem fornecida biblioteca e comecei a fazer o parecer, que me deu bastante trabalho porque sobre o assunto (a sucessão nos tratados internacionais) havia as mais díspares e variadas opiniões de autores portugueses e estrangeiros. Baseei-me muito num livro, sobre o assunto, do então negregado Silva Cunha, meu ex-professor e ministro caído no 25 de Abril, que citava uma vasta bibliografia e transcrevia muitos autores, mas ainda me vali de vários tratados e monografias que possuía e encomendei mais dois ou três através da nossa direcção de documentação (CDI – Centro de Documentação e Informação), chefiada pelo Ilídio Rocha os quais, todavia, chegaram atrasados dado o pouco tempo disponível, apesar de o Ilídio ser de uma eficiência e rapidez notáveis na obtenção de documentos e livros. Digo isto, porque considero que a transformação da biblioteca do banco em Centro de Documentação e a promoção do Ilídio a director, com meios e independência substancialmente aumentados foi obra do Cassimo e minha, que ambos considerámos como uma das mais importantes para Moçambique, o seu governo, o BM e todas as instituições governamentais. Os dossiers elaborados pelo Ilídio e seu pessoal ficaram célebres e permitiram aos ministros fazerem autênticos brilharetes nas reuniões internacionais a que tinham de ir. O Aquino de Bragança, que se auto intitulava o Kissinger de Samora Machel, ficou espantado de em Moçambique haver um serviço daquela qualidade e passou a ser uma carraça do Centro e do Ilídio. Uma vez em que o Aquino me elogiava o serviço tive ocasião de lhe dizer que nada seria assim se não tivéssemos o homem certo para o lugar certo – o Ilídio Rocha; daí, e de outras coisas, como em geral, o bom funcionamento do banco, se concluía que a cooperação com a antiga potência colonial podia ser útil aos novos países.
Voltemos, porém, ao parecer. Elaborei-o, baseando-o, fundamentalmente, nas diversas posições que Moçambique podia tomar, como país descolonizado, em relação a tratados celebrados pela ex-potencia colonial e que se lhe aplicassem: unilateralmente, rejeitá-los ou absorve-los, na totalidade e neste último caso declarando que sucedia no tratado; ou alterá-lo, neste caso só por negociação, mas mantendo o tratado em vigor, unilateralmente, enquanto as negociações não fossem concluídas por acordo ou em fracasso. Sublinhava que neste último caso, fracassadas as negociações, não era possível voltar atrás e qualquer das partes podia denunciar o tratado. Havia um ponto obscuro, que era a existência de um outro acordo, paralelo e secreto, entre Portugal e a África do Sul respeitante ao apoio desta ao exército português na luta contra a Frelimo. A posição quanto a este ponto não podia obviamente ser aceite por Moçambique, nem devia ser mencionada no parecer, mas aconselhei, verbalmente, que a delegação moçambicana, visto que o que estava sobre a mesa era o tratado sobre os mineiros, nem falasse no assunto e só tomasse posição, caso a África do Sul mencionasse a questão durante as negociações.
O parecer foi discutido numa reunião do comité central da Frelimo, que teve lugar no próprio banco, e deu origem a um Charivari dos diabos. Começou tudo aos berros, a maioria dizendo que Moçambique nunca podia subscrever a sucessão no tratado. O Mariano Matsinhe, todavia homem cordato e ponderado, declarou que se nós assinássemos aquilo, no outro dia vinha publicado no “Finantial Times”, de Londres, Só Samora Machel se mantinha calado. Acalmada a vozearia, pronunciou-se e disse: nós não vamos subscrever papel nenhum; vamos entregar o parecer aos sul-africanos dizendo que se trata de um parecer técnico sobre o qual ainda não tomámos posição, mas que é nesse quadro que o assunto deve ser discutido, a não ser que a delegação sul-africana tenha outro que queira apresentar. Samora abria uma janela para a possibilidade de ter um tratado com a África do Sul mas não dava quaisquer garantias e esperava pela reacção para perceber bem a intenção deles em relação à África austral e para saber se quanto a isto havia divergências. Por outro lado ganhava tempo, o que, não sendo essencial, era importantíssimo para a situação económico-financeira de Moçambique. Estou certo que, depois do que a seguir se passou, Samora ficou convencido que outro caminho era possível para a África austral que não o banho de sangue que todos previam.
Dias depois teve lugar a reunião com os sul-africanos, liderados pelo governador do “Reserve Bank” Samora entregou o parecer traduzido, com as referencias atrás expressas. O Governador sul-africano leu-o atentamente, circulou-o pelos elementos da delegação, conferenciou com eles e, depois, declarou: este documento ultrapassa a esfera da minha competência. Antes de me pronunciar, devo reportá-lo ao meu presidente da República; só ele pode decidir o que devemos fazer a seguir. Até lá, espero concordem em suspender esta reunião. Todos concordaram.
No dia seguinte o Ilídio Rocha recebeu, da presidência da República de Moçambique inúmeros pedidos de “dossiers” sobre a África do Sul e a sua política.
Creio que foi ali, com a estratégia e diplomacia de Samora Machel, que se começou a abrir o caminho para N’Komati e para a solução dos problemas do sul da África.
Quando me vim embora de Moçambique, cerca de dois anos depois, o tratado continuava em vigor, Moçambique tinha as suas contas em dia e, nas suas reservas à ordem do BM, quatro milhões de contos em divisas fortes e 45 toneladas de ouro. Não era muito, mas era totalmente diferente da situação que tínhamos encontrado em 1975;e permitia recuperar a produtividade das empresas, estimular a actividade económica e lançar Moçambique na senda daquele pequeno paraíso na terra, que sempre foi o seu caminho, independentemente de colonialismo, capitalismos, imperialismos ou socialismos. Na verdade, mais do que as ideologias, são os povos que determinam o seu futuro e, ali, naquele canto da África Oriental, deus ou o diabo, ou ambos, tinham semeado um conjunto de populações, raças e credos que acabaram por se entender e fundaram esse pequeno paraíso, cheio de defeitos e de fundadas esperanças, que é Moçambique.
Primeiro foram os nativos, africanos negros, espíritos ciosos das suas prerrogativas e dos seus direitos mas abertos às inovações e compromissos para as obter e com um grande espírito de solidariedade, amantes da paz mas facilmente estimuláveis à violência. Vasco da Gama, um grande senhor da história e não propriamente um modelo de virtudes, pelo que sabia do que falava, chamou àquelas terras “TERRA DA BOA GENTE “
Depois vieram outros povos, árabes, brancos, asiáticos e as magnificas misturas que tudo isto originou e, apesar de injustiças e prepotência, todos acharam que o melhor era arranjar um modus vivendi, que, apesar das injustiças sociais com forte conotação rácica, permitisse uma convivência civilizada. Para tal muito contribuiu o movimento de libertação – a Frelimo de Simango, Mondlane e Machel, que nunca fizeram da raça, mas sim da libertação, a razão da guerra. Por isso escolheram a guerrilha, mas não o terrorismo.


A ESTRATÉGIA DO BM

Resolvido o problema imediato da carência de disponibilidades sobre o exterior, havia outros problemas a resolver, qual deles o mais urgente: o apoio à economia real, a luta contra a fuga de capitais, a emissão de nova moeda, a reestruturação da banca e a confiança na mesma. Deixemos para o fim o apoio à economia real e vejamos primeiro os outros pontos.


EMISSÃO DE NOVA MOEDA

A Frelimo vinha com a ideia formada de emitir nova moeda. Vinha mesmo com a emissão já pronta, fabricada na Checoslováquia; as moedas eram bonitas, sextavadas com motivos moçambicanos, as notas de muito má qualidade e sem segurança nenhuma. Chamava-se metical e a ideia era trocar um metical por 10 escudos. Aquilo foi uma surpresa para nós, Cassimo incluído, e toda a administração do banco começou a pensar no assunto. E só encontrámos razões para não fazer, de imediato, a troca de moeda. Em primeiro lugar, a operação exigia uma absoluta confiança nos agentes encarregados da troca e não eram tempos para ter confianças exageradas, sendo de prever a possibilidade de muito dinheiro ir parar a mãos indevidas; depois a especulação aproveitaria a ocasião para inflacionar os preços de bens e serviços; depois a Frelimo vinha aconselhada a fazer a operação num prazo curto, um mês, no máximo, findo o qual a moeda antiga deixaria de ter valor e não podia ser trocada pela nova; ora a economia de Moçambique, graças às cantinas, estava razoavelmente monetarizada, pelo que havia muita pequena poupança guardada pelas mulheres nas palhotas e nos lenços e não era possível contactá-las num período tão curto, o que daria como resultado ficar muito dinheiro sem valor e o consequente descontentamento popular. Tudo isto foi exposto ao governo com a opinião do BM de que não era oportuna a substituição da moeda nos tempos mais próximos. A estes argumentos veio juntar-se um outro: a rádio Xiconhoca (uma rádio da futura Renamo, que ainda não actuava como guerrilha mas tinha já uma estação a transmitir da ainda Rodésia) anunciou que na nota de 10 meticais, com a efígie de Machel no verso e uma pakassa no anverso, os cornos do bicho saíam da testa de Machel, vista a nota à transparência. Fosse qual fosse a razão, a troca da moeda ficou sem efeito, por muitos anos. Mas a rádio Xiconhoca, neste ponto, falava verdade.
Outros assuntos eram de especial importância, como o da estrutura do crédito a conceder. O país definia-se como socialista e privilegiava a propriedade pública. Mas as nacionalizações de 24 de Julho de 1975 não tinham tido grande sucesso. A justiça estava um caos e a medicina pior. Um médico fora preso por ter assistido a um indivíduo, negro, que tinha tido um colapso e desmaiara no meio da rua, à sua frente, sob a alegação de que estava a exercer medicina privada. Os consultórios médicos privados foram todos encerrados, grande parte deles com equipamentos sofisticadíssimos, que ficaram lá dentro, a deteriorar-se, deixando de ser utilizados e ninguém os foi remover para continuarem a ser utilizados. Claro que o povo de Moçambique não era muito beneficiado no campo da assistência médica, mas os hospitais públicos e os hospitais das missões prestavam já muitos serviços à população; a assistência na maternidade estava em franco desenvolvimento e, por exemplo, a taxa de mortalidade da maternidade de Lourenço Marques do Hospital Miguel Bombarda, dirigida por um grande médico, moçambicano e branco, era das mais baixas de toda a África e era utilizada maioritariamente por mulheres africanas. Isto era devido não ao governo colonial, mas sim ao espírito reivindicativo do pessoal, sobretudo médicos e enfermeiros, tanto negros como brancos.
Mas, dado os maus resultados das mal preparadas nacionalizações, o governo não fez muitas mais, mas passou a intervir nas empresas que eram abandonadas pelos seus proprietários, nomeando administradores. O pessoal, em risco de perder o emprego, organizava-se em grupos dinamizadores e exigia do governo a nomeação de administradores. Chegaram a ser publicados no Boletim da República despachos de intervenção em tabacarias de escada, sem a menor viabilidade económica.
O resultado disto era que os bens da empresa eram distribuídos pelos novos administradores ou por estes e pelo pessoal, quando este estava atento e não deixava os administradores ficarem com tudo e as empresas fechavam. Claro que já antes os primitivos proprietários, que saíam de Moçambique, tinham descapitalizado a empresa tanto quanto podiam. Este fenómeno aconteceu apenas com pequenas empresas industriais e comerciais, porque as maiores e de organização mais sofisticada, aguentaram-se, intervencionadas ou não. Todavia este fenómeno causou desemprego e empobrecimento da população e podia ter sido evitado, se outra fosse a politica.
O BM, dada a forma como tinha sido negociada a transferência do BNU, mantinha toda a sua operacionalidade e tinha uma informação actualizada do estado da economia moçambicana, com dados muito concretos sobre o estado das culturas e da produção industrial que era fornecida à administração do banco pelos diversos e inúmeros balcões espalhados por todo o país e que se mantinham ao corrente da actividade económica. Demos ordem aos diversos directores e gerentes para que mantivessem o fluxo de crédito e, para o efeito aumentámos as suas competências, mas dando-lhes instruções para que sempre que tivessem dúvidas, quer pelo súbito aumento do crédito solicitado em relação ao histórico quer por outras informações que tivessem sobre as empresas, da aplicação das importâncias solicitadas aos fins propostos, que ou negassem os créditos ou os submetessem à apreciação da administração ou do governo do banco. Tratava-se de uma medida cautelar, destinada a evitar excesso de liquidez na mão dos agentes económicos e a aplicação desse excesso a fins ilegais, como a exportação de capitais ou financiamento de actividades especulativas; estas medidas eram completadas com outras, já praticadas no tempo do BNU, de informação sobre a evolução e comportamento das empresas e estrito controle sobre as garantias oferecidas (penhores, hipotecas, fianças etc.). O pessoal do banco, tanto o cooperante como o directamente vinculado ao banco, foi inexcedível de competência e de seriedade e conseguiu evitar tanto a fuga de capitais como o descalabro financeiro que a súbita existência de disponibilidades externas podia ter originado. Mas não conseguimos evitar algumas operações sobre que não tínhamos controle e que relatarei mais adiante, como sejam a fuga de aviões de carros, de barcos, de gado ou recebimento directo no destino do valor de exportações por razão de procedimentos habituais e que foram de imediato colmatados, mas que se reduziram a importâncias insignificantes que não puseram em causa as finanças de Moçambique e que só num caso foram determinadas por uma insuficiência regulamentar do BM.
Esta acção do banco não foi muito popular, sobretudo para os abutres que se perfilavam no horizonte, desejosos de entrar na senda dos empréstimos nunca pagos para enriquecerem quer em moeda moçambicana quer em dólares, através das comissões que recebiam pelo controle do comércio externo. A primeira batalha foi a de quererem que o BM fosse apenas um banco central e se autonomizasse a parte de banco comercial noutro banco. Claro que nisso tinham o apoio do FMI.
Sempre achei que, pelo menos em países subdesenvolvidos, é de toda a conveniência que o banco central tenha uma forte componente comercial, para não perder o contacto com a economia real, que é o que mais importa. Por outro lado, a visão da economia real estimula e condiciona, em função dos interesses macroeconómicos do país, a concorrência a fazer à banca comercial e para ela ser eficaz é muito conveniente a autoridade e os poderes do banco central. Assim defendi que, na altura a criação de um banco comercial era contrário aos interesses de Moçambique; mas nunca vi tanto marxista-leninista preconizar esta separação. O que foi mais tarde essa separação e a corrupção a que deu origem, só deram razão à minha tese que aliás o governador do banco, Alberto Cassimo, também perfilhava. Mas a clarividência de Samora Machel, a quem tive ocasião de expor a minha opinião e que não morria de amores pelas opiniões do FMI, abortou a tentativa dando uma resposta negativa à proposta. Tudo isto veio a propósito da organização da banca, em Moçambique que, como sempre, da parte do governo, passava por uma nacionalização total. Ouvido o BM, explicámos que os dois principais bancos, o Montepio de Moçambique e o Instituto de Crédito já eram controlados pelo estado, bem como o BM; os outros eram todos delegações de bancos portugueses e um de Angola, já independente mas num caos O único com sede em Moçambique era o Standard-Totta, totalmente privado. Não tínhamos qualquer interesse em nacionalizar delegações, cujas actividades estavam perfeitamente controladas e só iríamos receber paredes e mobiliário, além de abrirmos um contencioso com Portugal e Angola. Quanto ao Standard-Totta era um pequeno banco, bem administrado e moçambicano, pelo que não o nacionalizar seria uma prova de que Moçambique estava aberto ao investimento privado e estrangeiro.
Por essa altura aconteceu uma situação anómala com uma delegação de um banco português, que resolvemos com bom senso. Havia uma empresa açucareira, a Maragra, que estava completamente falida, que tinha compromissos externos titulados por letras internacionais, a última das quais se ia vencer e era avalizada pelo Banco de Fomento (delegação em Moçambique e sede em Lisboa). Se a Maragra não pagasse, teria de ser o Banco de Fomento a pagar e teria de mobilizar as divisas em Lisboa, embora ficasse com um crédito em divisas sobre a Maragra. Mas esta estava falida e sem qualquer liquidez pelo que não tinha o contra valor em escudos moçambicanos para entregar ao BM, para este lhe disponibilizar as divisas necessárias ao pagamento. Mas a verdade é que apareceu no BM com os escudos moçambicanos necessários, a solicitar a emissão do cheque em dólares. Fomos apurar onde tinha a empresa arranjado o dinheiro e depressa descobrimos que lhe tinha sido emprestado pela delegação de outro banco português que não o de Fomento. Mas porque teria tal banco feito um empréstimo cujo montante sabia nunca mais ir receber. Averiguámos mais fundo e descobrimos. Por essa altura os portugueses que ainda estavam em Moçambique tinham em grande número, decidido depositar as suas poupanças no Consulado português. Este, posto ao corrente das dificuldades do Banco de Fomento, depositou esse dinheiro na delegação do banco português para este o emprestar à Maragra para esta poder entregar o contra-valor das divisas que ia solicitar ao BM. Ainda discutimos se devíamos fazer a operação, mas acabámos por decidir que sim. Afinal o pagamento era de equipamento valioso que estava na Maragra e que fosse qual fosse a solução para a Maragra, continuava a ser útil. Mas convocámos os directores das delegações do Banco de Fomento e do que fez o empréstimo e chamámos-lhe a atenção para que comportamentos daqueles não eram admitidos e que se repetissem algo de igual ou semelhante proporíamos ao governo que lhes encerrasse a loja. O Alberto Cassimo foi delicado mas duro na admoestação e o BM reforçou a fama que já estava adquirindo de se pautar por comportamentos éticos mas rigorosos.
Só o que nunca percebi foi porquê o governo português levou tanto tempo a decidir-se a pagar aos depositantes do consulado. Afinal foi com o dinheiro deles que o Banco de Fomento e o Banco de Portugal se livraram de dispender aquelas divisas, pelo que não tinha qualquer razão de ser o argumento de que tendo os depósitos sido feitos em escudos moçambicanos não tinham que o devolver em escudos portugueses. Deviam tê-lo devolvido com juros, porque dele se aproveitaram e tiraram vantagem.


PEQUENOS EPISÓDIOS SIGNIFICATIVOS

A política atrás referida do BM deu origem a diversos episódios que traduziam algum espanto dos agentes económicos por verem o banco a apoiar as empresas que se mantinham viáveis, apesar da conjuntura, quer interna quer externa, ser desfavorável. Internamente, o êxodo de muitos residentes, quer brancos quer negros, afectou gravemente as empresas, diminuindo a sua competitividade e rentabilidade; externamente, a crise económica degradara a cotação das matérias-primas e dos produtos agrícolas, enquanto aumentavam os custos dos factores de produção, tais como a energia, o que tudo prejudicava Moçambique. Por outro lado tínhamos a bonança do ouro dos mineiros que conjuntamente com as exportações e os serviços (portos e caminhos de ferro) talvez dessem para manter a economia em níveis aceitáveis capazes de não causar desgraças maiores para a população. Para tal era necessário estimular a auto-suficiência na produção alimentar, o que não era difícil, dada a abundância de terrenos agrícolas, a generosidade do mar e a existência de uma manada de gado capaz de satisfazer as necessidades internas. Era também necessário que o governo não fizesse muita asneira, perdesse a ideia fixa de colectivizar toda a produção e de desincentivar a produção familiar e artesanal. De imediato propusemo-nos apoiar as empresas com um futuro viável, apoiar as pequenas empresas agrícolas e de pesca e também os grandes empreendimentos industriais que o governo nos propusesse (mas destes pouco se viu).
A tudo isto metemos mão. É absolutamente falso, como quer um relatório anónimo sobre a banca em Moçambique, que o BM funcionasse como uma caixa do governo onde este fosse buscar dinheiro para os seus gastos sumptuários, sobretudo viagens de ministros e presidente. Claro que o banco era a caixa do estado e o governo sacava da sua conta as verbas de que necessitava de acordo com o orçamento. Mas dispendia as verbas do orçamento, não verbas do banco. Claro que o BM fazia empréstimos ao governo e, por vezes, antecipava lhe lucros. Só no primeiro ano de actividade o BM teve mais de 400.000 contos de lucros, depois de fazer fortes provisões. Mas os lucros do banco eram do estado e os adiantamentos e os empréstimos eram uma obrigação estatutária do BM, passando a administração dos seus montantes a ser responsabilidade do governo que não do banco.

Voltemos porém às nacionalizações do 24 de Julho de 1975. Mantive-me calado e não expressei qualquer opinião sobre as mesmas, até que o governador Cassimo, estranhando o meu silêncio, me perguntou, directamente, o que eu pensava; respondi-lhe que ele, se calhar não ia gostar da minha resposta, mas que se mesmo assim insistisse, eu lha daria; insistiu e eu respondi. Disse-lhe que, quanto à Justiça, não tardaria muito que o governo tivesse que engolir grande parte do que tinha feito e teria que recrear os advogados e nomear juízes credíveis. Quanto aos advogados já o D. Pedro 1º de Portugal e o Henrique 8º de Inglaterra tinham feito o mesmo e com pouco sucesso. Quanto a juízes não independentes e sem formação adequada, tal tornaria Moçambique num país incredivel como estado de direito, o que traria sérias e nefastas consequências a nível de investimentos e de comércio externo; finalmente se não fosse garantida a independência dos tribunais, ninguém mais teria confiança em Moçambique e sem confiança não há investimento.
Quanto aos médicos, a medida ia afastá-los de Moçambique e o país precisava era de mais, não de menos médicos; quanto às agências funerárias a sua nacionalização era ridícula; mais valia fixar preços; quanto às casas, os edifícios de maior porte estavam todos hipotecados aos bancos ou ao Montepio e, naquela conjuntura era fácil accionar as hipotecas e faze-los reverter para uma entidade pública; quanto aos imóveis pertencentes a entidades públicas distintas do Estado, como o próprio BM, ficava-se sem saber se também eram nacionalizadas ou não; quanto aos prédios de rendimento mais pequenos, eram resultado, normalmente de pequenas poupanças, de pessoas que queriam garantir um rendimento para o fim das suas vidas e as tinham investido, dando trabalho e pondo a economia a girar e eu não percebia porquê nós estávamos no banco a garantir a segurança dos depósitos e o governo punha em cheque estas poupanças; além disso nacionalização sem indemnização era puro esbulho. Mas a nacionalização dos prédios das companhias de seguros era o pior de tudo, porque eles faziam parte das reservas e com o desaparecimento destas, nenhuma companhia de Moçambique conseguia colocar um resseguro e, sem os resseguros, as companhias moçambicanas não tinham capacidade para cobrir os riscos cuja cobertura lhes era pedida. Moçambique era um país de transito de mercadorias e a sua indústria de seguros tinha interesse nacional, poupava divisas e era uma fonte de receitas, havia que protegê-la, fosse pública ou privada e não que condená-la a desaparecer.
O Cassimo abanou a cabeça e disse que eu estava sempre do contra, mas acho que foi relatar as minhas objecções para o governo, porque dias depois apareceu-me a pedir se eu não me importava de fazer uma portaria que excluísse os prédios das companhias de seguros das nacionalizações. Respondi-lhe que me estava a pedir que fizesse um disparate jurídico, porque com uma portaria não se podia alterar um decreto-lei, mas como estávamos em período revolucionário eu ia tentar fazer uma portaria revolucionária que fiz e consegui encaixar, um pouco à bruta, no articulado do Decreto-lei.

Tuesday, September 28, 2010

Andam todos os oposicionistas de direita a dar como exemplo do combate à crise, a Irlanda, Só que omitem que com as medidas de combate à crise (deminuíção de vencimentos,eliminação de organismos estatais,cortes radicais nas despesas públicas), a Irlanda entrou de novo em recessão e o seu PIB deminuiu de novo no último trimestre e, provávelmente continuará a deminuir no próximo.
Isto não quer dizer que não haja despesas sumptuárias a cortar que o governo não se atreve a cortar porque tem medo de atingir os seus asseclas. Mas se o PSD estivesse no governo faria o mesmo e é por isso que preconiza os cortes na despesa mas não se atreve a indicar onde devem ser os cortes, porque tal iria desmobilizar grande parte dos seus potenciais votantes. E todos, PS,PSD e governo estão a contar com crise politica em Maio próximo e eleições a seguir.Tudo isto aumentado pelo facto de o PR tambem estar em campanha eleitoral.Mas se as coisas pioram muito é bem capaz de se não recandidatar. Já terão pensado nisso as cassandras de mau agoiro que pululam nos nossos meios de comunicação social?
Cortar nas despesas? Há muito por onde cortar, assim tenham coragem. O primeiro e fundamental corte é no número de deputados que devia ser já reduzido para um número não superior a 150.Grande parte dos deputados não anda a fazer nada na AR e a democracia representativa não sairia minimamente prejudicada. Outro corte fundamental é nos fringe benefits(beneficios adicionais) dos dirigentes de cargos públicos e dos politicos. Tais senhores não gastam um centimo nem com comida nem com transportes e, muitos, nem com vestir. Ora quem ganha o que eles ganham pode muito bem suportar essas despesas básicas do ser humano, que os outros cidadãos suportam dos seus salários Portanto é de cortar nas ajudas de custos, nas deslocações em carro próprio (substitui-las pelo pagamento da gasolina necessária ao transporte se o funcionário quiser deslocar-se em carro próprio), reduzir drásticamente as deslocações em serviço e privilegar as deslocações em transportes públicos e responsabilizssar pelos excessos os dirigentes máximos dos serviços. Controlar ao máximo as deslocações ao estrangeiro. A maior parte dos investigadores da função pública passa a vida no estrageiro, em conferencias e reuniões que não têm nenhum interesse para o país. Há pouco tempo uma investigadora , que passa a vida em viagens à custa do erário público, escreveu um livro. Julgam que era um livro cientifico? Não, era um livro de impressões turisticas.
Acabar de vez com as direcções de serviços, de departamentos e outras chefias sem objecto, isto é, em que os respectivos chefes não têm nem serviços nem departamentos nem outras estruturas para exercer as suas funçóes de comando, mas que continuam a receber como se fossem chefes.
Aqui há anos, sem nimguem perceber porquê, já que este governo apostava na investigação e nas novas tecnologias, foi declarada a intenção de extinguir o INETI e os seus funcionários e património distribuidos atrabiliária e estúpidamente por outros organismos e serviços. Mas como o INETI nunca mais foi extinto, os seus chefes continuam a receber como chefes embora não chefiem coisa nenhuma.
Esta extinção do INETI tem muito que se lhe diga. Como tinha um vultuoso património, principalmente o seu campus e o polo tecnológico do Lumiar, todos à beira de Telheiras e com dezenas de hectares, todo ele foi transferido, por artes mágicas de um decreto-lei, para o IAPMEI, um instituto público que não faz nada, a não ser servir de saco azul ao Ministério da Indústria e que viu assim o seu património engordar sem nada pagar, em muitos milhões de euros.
Claro que os seus dirigentes, avençados, co contratantes e outros beneficiários das públicas larguezas ganham todos balúrdios em vencimentos e negócios, mas o Estado não ganha nada, antes perde. Na verdade os muito laboratórios que viviam em casa própria r portanto nada tinham que pagar, passam agora a ter que pagar ao IAPMEI uma renda mensal de que o erário público não
tira nenhuma vantagem. Pura especulação entre organismos públicos.
O LNEG,novo instituto público que absorveu a maioria dos funcionários do Ineti,apesar de pouco fazer ou nada, comprou agora sete carros topo de gama para uso do seu Conselho Directivo (não foram só as Águas de Portugal que se meteram nestes espaventos).
No polo Tecnológico do Lumiar está instalada a hoje célebre DELPHI, que paga um preço ridiculo pelos espaços que ocupa. Foi o ministro de então quem impôs tal preço, já que a entidade que geria o Polo o não queria aceitar, com o argumento do grande interesse para o país na entrada em Portugal dessa "grande" multinacional. Agora a DELPHI liquida os seus negócios, despede trabalhadores, causa prejuízos a Portugal, mas dali não sai nem nimguem lhe rescinde o contrato.
O LNEG, depois de espantar os juristas que recebeu do INETI, contratou duas sociedades de advogados para aconselhamento juridico (os serviços de contencioso são pagos à peça e á parte), com chorudas avenças. Mas os juristas do INETI foram para outros serviços e o Estado nada poupou com a operação.
Por outro lado é evidente que qualquer instituto público, que deve ter uma função especializada e especifica, deve ter uma assessoria juridica especializada na matéria das suas funções;e a herdada pelo Lneg era das melhores da função pública portuguesa. É por não terem tal noção que os organismos públicos contratam tão mal, E é por os apoios externos serem tambem eles deficiente e muitos assuntos não terem acompanhamenyo interno capaz, que Portugal está sempre a perder acções nos tribunais internacionais. Em todo o mundo se dá a maior importancia a um acompanhamento juridico correcto das questões afectas aos organismos públicos, excepto neste nosso malfadado estado de direito.

Wednesday, September 8, 2010

O meu amigo Matateu

Também fiz desporto. Aliás, em Lourenço Marques, o mais difícil era os jovens não fazerem desporto. Eu queria jogar futebol e, se possível no Desportivo, como guardardes. Mas, nesse tempo, o Desportivo tinha o Luís Nunes e o Pedro Santos, o Ferroviário tinha o Helder e o Costa Pereira ( sim, o do Benfica ), o Sporting, que para mim estava fora de causa por ser benfiquista e do rival local, o Desportivo, tinha o Evaristo e o Pegado e para as crises, o Juca (sim, o do Sporting de Portugal ), que, além de um fabuloso médio, era também um óptimo guardaredes. Todos excelentes, dos quais se destacou mais o Costa Pereira. Nos clubes pequenos havia também guardaredes fora de série, como o Fernando Vaz (hoje grande médico em Maputo), outro muito bom, no 1º de Maio, cujo nome me esquece. De modo que se eu queria jogar nas honras tinha que ir jogar no Malhangalene, na altura com falta de guarda-redes, que era um clube simpático, de bairro, que disputava alegremente os últimos lugares da tabela, com os clubes mais fracos. Mas como não havia 2ª divisão e portanto, não havia risco de descida, ninguém se preocupava muito com isso.
O Malhangalene tinha um grave senão, que só descobri muito depois de lá ter começado a jogar: os estatutos estabeleciam que era um clube só para brancos. Quando descobri fui ter com o presidente do clube, disse-lhe que aquilo não podia ser e que eu não continuaria a jogar num clube declaradamente racista. O homem disse-me que aquilo tinha sido uma estupidez mas que ele ia promover a alteração dos estatutos; e assim fez
Assim aconteceu que eu lá estava, nas balizas do Malhangalene, sofrendo golos do Veiga, do Laje, do Rebelo, do Coluna (sim, esse ), do Eusébio (também ), do Vicente e daquele génio da bola, então a amanhecer, chamado Matateu.
Ele jogava no 1º de Maio (camisolas vermelhas ), clube do meio da tabela mas que às vezes disputava os últimos lugares com os mais fracos, outras os primeiros lugares com os melhores. De modo que os jogos com o 1º de Maio eram importantes para todos os clubes. O Matateu era um jogador inteligentíssimo, de uma finta fulgurante, uma colocação espantosa e um remate poderoso. Dele sofri muitos golos, com orgulho o digo, mas também foi a remates dele que fiz algumas das melhores defesas da minha vida de que já ninguém se lembra, mas que eu nunca esqueci.
Eu, melhor, o Malhangalene, tinhamos um grande defesa central. Era o Zé Gomes. Atleta de primeira água, era alto e tinha um fisico portentoso, com duas pernas enormes, musculadas e fortes. Tinha, ainda uma profissão que o obrigava a estar sempre em forma: era guarda-fios dos serviços de electricidade, encarregado de reparar as avarias da rede eléctrica, o que, com a tecnologia da época, implicava subir os pau-de-fios como os apanha-cocos sobem aos coqueiros.
O Zé Gomes tinha uma estratégia anti-Matateu, que umas vezes funcionava, outras não. Quando o Matateu corria para a baliza, podia fazer as fintas que quisesse, que o Zé Gomes plantava-se na frente dele, enorme, imóvel, braços abertos e uma perna levantada em paralelo ao chão. Isto obrigava o Matateu a dar uma grande volta e a perder angulo de remate, mas, inteligente como era, depressa encontrou o antídoto: passava a bola por debaixo da perna levantada do Zé e ele passava pelo outro lado, aparecendo sozinho e de bola dominada, frente ao guarda-redes. O Zé Gomes tentou logo contrariar a técnica do Matateu e começou a treinar-se em baixar rapidamente a perna levantada e levantar a outra. Isto dava origem a inúmeros choques: se o Zé levantava a perna quando o Matateu ia a passar era livre ou grande penalidade; se a perna já estava levantada e era o Matateu quem, no seu afã, chocava com ela, não era falta mas ele aparecia-me a rojar pelo chão, por um lado, enquanto a bola seguia por outro. O chão pelo qual rojava era, normalmente o do campo do Sporting de Lourenço Marques, sem relva e com um piso que mais parecia lixa, de modo que vinha sempre queixoso e dizia-me; - Ai, este Sr. Zé Gomes, este Sr. Zé Gomes!, e eu respondia-lhe: -Deixa lá que ele não fez isso por mal e já passa! E foi com este tipo de conversa que ficámos amigos.
Por esse tempo, o Benfica fez uma digressão a África, incluindo Moçambique. Os dirigentes do Benfica eram todos do tempo do meu pai, em Benfica, de modo que naturalmente passaram a frequentar o restaurante de meu pai, comendo os melhores camarões do mundo (os de Moçambique) e lembrando a juventude comum e o Benfica do Lázaro e do Vitor Silva, do Gaspar Pinto e do Chico Ferreira. Numa das vezes eu estava lá e meu pai apresentou-me os senhores. Como a conversa caísse no futebol e apercebendo-se eles que eu jogava, logo me perguntaram se eu achava que algum dos jogadores a actuarem em Lourenço Marques podia interessar ao Benfica. Eu indiquei -lhes logo alí, dois: o Laje e o Matateu. Mas fui-lhes dizendo que embora fossem dois jogadores excepcionais, de igual valia embora de características diferentes, era melhor não pensarem muito no Laje porque ele namorava uma bela laurentina, por quem tinha uma paixão tórrida, a qual não podia nem ouvir falar em sair da terra dela. Eles foram, pelo menos, ver o Matateu, mas parece que não gostaram; o que, diga-se de passagem, foi estranho, porque mesmo quando o Matateu estava em dia não, o que acontece a todos, qualquer leigo em futebol via que estava alí um grande jogador. Os dirigentes do Benfica é que deviam pertencer àquela estirpe de dirigentes nacionais, cheios de ignorância e empáfia, que despedem mourinhos entre dois whysques. Foi assim que o Matateu não veio para o Benfica, quando ainda não havia concorrência; mas uma pérola futebolistica daquelas não fica escondida muito tempo e depressa o Sporting e o Belenenses o descobriram e disputaram. Foi o Belenenses que, felizmente para os benfiquistas ganhou a corrida, e o Matateu estreou-se num jogo particular contra o Porto, no estádio nacional. Nessa altura já eu estava em Lisboa, tirando o meu curso, e , embora o meu Benfica não jogasse, tinha de ver a estreia do meu amigo Matateu. Lá fui cedo para o estádio, paguei o meu bilhete e ainda consegui, graças a um simpático dirigente do clube de Belém, dar um abraço e um estímulo ao meu amigo. Depois fui para o meu lugar nas bancadas e, por acaso, caí no meio de um grupo de adeptos do belenenses que discutiam a possível estreia do “ preto” que uns opinavam ser muito bom, outros diziam não prestar para nada e a maioria mostrava não o conhecer de todo.
Contive-me durante algum tempo, mas a certa altura decidi intervir e lá expliquei àqueles azuis embasbacados que o seu clube tinha feito a aquisição do século. Quiseram saber quem eu era e , quando lhes disse, que conhecia bem o Matateu mas tinha jogado contra ele e , como guarda-redes, tinha “engolido” muitos golos marcados por ele, que estava alí não porque fosse do Belenenses ou do Porto, mas porque queria ver jogar o Matateu; que eu era benfiquista de alma e coração e que a minha pena era ele não ter vindo para o Benfica este discurso, deixou-os curiosos. O jogo começou pouco depois. Nessa altura a grande figura da equipa do Porto era o Virgilio, jogador correcto e de alta qualidade que mercê de uma grande exibição contra a Itália, era conhecido pela alcunha do “leão de Génova”. Foi ele encarregado de marcar o “preto” e o “preto” passava por ele como se ele não estivesse ali. Eram dribles, eram bolas por debaixo das pernas, eram mudanças de direcção e de velocidade que deixavam o Virgilio pregado ao solo, a tal ponto que a certa altura e fora dos seus hábitos, perdeu a cabeça e enfiou uma estalada ao Matateu. Este, com o complexo do colonisado, não reagiu e encolheu-se , para evitar apanhar mais; o árbitro, como era um amistoso , de inicio de época, fez vista grossa e teve que vir o Feliciano (uma das torres de Belém) a correr , lá do seu lugar dar um abanão ao Virgilio, para salvar a honra do convento.

Nesse jogo o Matateu não meteu nenhum golo, mas deu de bandeja a outro avançado a bola com que marcou o golo da vitória do belenenses e fez um grande jogo. Os belenenses à minha volta estavam felizes e olhavam-me com consideração por eu lhes ter antecipado a excelência do jogador. Gostaria de ter visto a cara deles, quando uma semana depois, já para o campeonato, o Belenenses ganhou por 4 ou 5 ao Sporting, todos ou quási todos os golos do Matateu.
Das duas vezes fui ver o Matateu, não os clubes que não eram o meu, mas de ambas as vezes saí com o peito cheio de orgulho moçambicano, orgulho que, por razões futebolistas, só voltei a sentir cerca de uma década mais tarde, quando já exercia a profissão de advogado em L.M. e me desloquei à Europa. Tive de ir a um banco, em Paris, descontar um cheque para o que exibi o passaporte, que na capa dizia Moçambique. Então o funcionário bancário olhou o passaporte,sorriu e exclamou:
-Tiens! – le Mozambique, le pays d’ Eusébio!
Assim, graças à magia do futebol, a mais de 14000 Km. de distancia , um francês, por tradição alheio á geografia, conhecia Moçambique.

Wednesday, September 1, 2010

OS TRÊS JULGAMENTOS

O fim da guerra em Moçambique, apesar da recusa de Salazar em aceitar “os ventos da história”, trouxe profundas modificações politicas que afectaram a vida pacata de uma sociedade colonial, estratificada em camadas sociais bem distintas e facilmente identificáveis: os indígenas, reconhecíveis pela cor da pele, e os colonos. Superintendendo em tudo isto estava o aparelho colonial que via nas colónias o campo guardado, onde todas as actividades, fossem económicas, culturais ou sociais estavam sob o seu controlo.
Para se criar um cine clube em Lourenço Marques foi necessário por, inicialmente, à sua frente um homem do regime, o arquitecto Soeiro, todavia um espírito liberal e um apaixonado pelo cinema, cujo critério de escolha de filmes e de organização dos programas era mais amplo que os dos simpatizantes comunistas que, como de costume se perfilavam para controlar a organização, aproveitando-se do espírito democrático dos outros interessados e da solidariedade contra o regime, que nessa altura nos unia a todos. Note-se que entre os tais simpatizantes ou “compagnons de route “ havia verdadeiros espíritos de eleição que em muito contribuíram para o sucesso e desenvolvimento do cine clube que se transformou no mais importante de todos ( talvez pedindo meças com o do Porto) os que funcionavam no espaço sob administração portuguesa. O sr. Morais, o Jorge Pais, o Rui Baltazar e o Navarro,eram os mais destacados de um grupo a quem se ficou a dever a importância cultural do cine clube e a sua expansão que lhe aumentava a força e o prestigio, de tal modo que as entidades públicas, apesar de não lhes faltar vontade de acabar com aquele “cancro” cultural, não se atreviam, a não ser por via censórica, a meter-se com ele. O grupo acima referido tinha todavia um defeito: um mau sentido prático da vida. Quando assumiam, em bloco, com consentimento e apoio dos democratas que neles votavam, a direcção do cine-clube, começavam a fazer conferencias e debates, a que atribuíam grande valor mobilizador das massas ( compareciam meia dúzia de gatos, quáse todos lendo pela mesma cartilha) e descuravam as sessões. Eu bem lhes dizia que sem sessões não havia cine clube, porque os associados pelos 20 escudos mensais da quota queriam pelo menos, ver 3 filmes e diferentes dos programados pelos cinemas. O resultado era que as direcções deles acabavam sem dinheiro e sem filmes para exibir; depois elegiam-me a mim, para me passar a batata quente e para ver se resolvia o problema. Eu, todavia, fazia-me sempre acompanhar pelo Jorge Pais e pelo Morais, com cuja colaboração, indispensável, se podia sempre contar para safar o cine-clube.
De uma das vezes em que tal situação aconteceu, o cine-clube estava reduzido a uma centena de carolas que pagavam quotas, havia 3 meses que não dava sessões e não havia dinheiro para mandar cantar um cego. Lá reunimos e encontrámos duas soluções que talvez…talvez, resolvessem o problema. Uma era ir falar com o proprietário do cinema Gil Vicente, para ver se arranjávamos rapidamente uma sessão. Este era um homem que vivia do cinema, mas era também um apaixonado por ele e que via com bons olhos a existência do cine-clube que não considerava um concorrente mas antes uma entidade estimuladora do gosto pelo cinemaO pai dele, Manuel Rodrigues , tinha sido pioneiro da exibição comercial de cinema em Moçambique. Ele tinha um gosto apurado pelo cinema e distinguia muito bem um bom filme de um mau filme e um filme com sucesso comercial de outro que, embora bom, o não teria. Mas, dessa vez, recebeu-nos muito bem mas foi-nos dizendo que, de momento, não tinha nada em carteira que nos servisse e nos pudesse dispensar. De repente, porém, bateu com a palma da mão na testa e exclamou: Esperem, tenho aí um filme que é muito bom, mas que não vou exibir porque não dá para uma sessão, com uma assistência de meia dúzia. Vou devolve-lo, mas se o quiserem, têm que o exibir ainda esta semana,
Tratava-se dos 400 Golpes do Truffaut. Na altura, a “nouvelle vague” só era conhecida de meia dúzia de moçambicanos que liam revistas estranjeiras, mas esses eram nossos associados. Aceitámos logo a proposta e ele cedeu-nos um sábado de tarde, que era uma ocasião óptima. Mexemos todos os cordelinhos para anunciar a sessão nos jornais diários, publicámos artigos sobre o Truffault e a nouvelle vague e referencias ao filme e mandámos uma circular a todos os associados, sublinhando que era a única oportunidade de verem, em Moçambique, aquele filme que já tinha um lugar na história do cinema. No dia da exibição os 1100 lugares do Gil Vicente estavam esgotados e ainda havia umas dezenas de pessoas em pé ou sentadas nas escadas do balcão. No fim da sessão o proprietário do cinema, César Rodrigues veio ter comigo e disse-me: se fosse eu a levar o filme, tinha cá 20 ou 30 pessoas e não dava para o petróleo. Vocês, enchem-me a casa!
É certo, respondi eu, mas agora já pode levar todo o Truffault que vier aí, porque vai ter casa cheia.
Sorriu-se, mas levou a sério o que eu lhe disse, porque foi no Gil Vicente que vi o Truffault quási todo, incluindo esse incomparável Beijos Roubados, uma das mais fabulosas comédias da história do cinema. Só não levou o Jules e Jim, mas a história deste filme em Moçambique contá-la-ei noutra ocasião.
Com a sessão dos 400 Golpes, o cine clube arrebitou, mas era preciso mais um golpe para criar confiança nos associados e voltarmos aos 1600 a pagar quotas; era preciso avançarmos rapidamente para a 2ª alternativa da nossa estratégia,
Por esses tempos encontrava-se em Lourenço Marques o Zeca Afonso, já no auge da sua carreira, Fui falar com ele, amigos, que éramos, contei-lhe das desgraças do cineciube e pedi-lhe que preenchesse metade de uma sessão do cineclube, À borla, claro estava, mas disso nem se falou, porque era óbvio. Disse logo que sim, sem por condições e marcou-se a data.
A outra metade do programa era preenchida com um filme alemão, fornecido pelo consulado daquele país, do qual não tínhamos grandes referencias, mas já legendado em português e que se chamava, se a memória me não falha “ Wir Wunderkinder”, Era um filme espantoso que tratava do renascer da especulação imobiliária na Alemanha Ocidental do pós-guerra de 1939/45, As manobras e corrupção dos especuladores eram denunciadas por um jornalista que, em consequência, era perseguido, sofria atentados e era objecto de tentativas de corrupção que sempre rejeitava , O filme acaba com uma cena em que os especuladores vão visitar o jornalista num andar elevado de um prédio . ainda em construção para tentar convence-lo a não publicar um artigo que os vai prejudicar, Sobem, para isso, num elevador que funciona, Perante a recusa do jornalista saem desvairados ,jurando vinganças, e enfiam na primeira porta de elevador que encontram; mas, atrás desta não há elevador, só buraco e eles estatelam-se dezenas de pisos abaixo, definitivamente mortos, Um filme destes, com este final, depois de uma sessão com o Zeca Afonso onde se cantou a Grândola e os Vampiros acabou como só podia acabar: uma sala cheia, a abarrotar que já antes tinha aplaudido freneticamente o Zeca, rompeu numa generalizada salva de palmas, demonstrando que era gente pacifica mas detestando prepotências e atentados à liberdade.
A sessão foi um sucesso; a sala estava cheia e entornava pelas costuras. O cineclube estabeleceu que cada associado devia pagar 3 quotas atrasadas. Muitos pagaram o ano inteiro só para verem e ouvirem o Zeca, Este foi aplaudido de pé, no fim de cada canção e obrigado a voltar ao palco e a cantar de novo várias vezes. Houve quem propusesse que continuasse o Zeca e não se exibisse o filme( mas depois gostaram dele ), O cineclube libertou~se da miséria e poude continuar com as suas missões que não eram apenas exibir filmes, mas também elaborar programas de qualidade, publicar uma revista ( a OBJECTIVA ), impulsionar o cinema amador e organizar concursos, promover sessões de cinema nos subúrbios, para crianças africanas que nunca tinham visto cinema e que deliravam com o Charlot, o Buster Keaton, o Bucha e Estica, as quais eram cada vez mais concorridas e para as quais se preparava o salto de fazer sessões especiais para crianças nos cinemas da cidade de betão.Este era o sonho do Sr Morais que, quási todos os fins de semana, se deslocava para os subúrbios, com uma velha máquina de 16 mm. às costas, para dar às crianças negras, mistas, amarelas ou brancas uma lição de democracia e de bom cinema.
Era um fervilhar cultural que se desenvolvia em Moçambique, apesar da censura, da policia politica, da prepotência fascisante de muitos poderes públicos, contra os quais lutavam o cineclube, o” Teatro de Amadores de Lourenço Marques”(TALM), com, entre outros, o Mário Barradas a encenar, o Núcleo de Arte, a Sociedade de Estudos, o Itinerário, a Voz de Moçambique, a Tribuna, por vezes O Brado Africano, a Associação dos Naturais e a Associação Africana (apesar das perseguições policiais), o Bispo da Beira, D. Soares de Resende e, depois, D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula-Em tudo isto trabalhavam,gratuitamente, intelectuais, curiosos interessados, todos unidos na luta pelo desenvolvimento de uma cultura moçambicana, para eles necessário porque, fossem quais fossem as suas convicções politicas uma certeza era comum a todos eles: Moçambique não podia, por muito mais tempo, continuar a ser uma colónia.

Wednesday, July 28, 2010

A POESIA DO FUTEBOL

Terminado o campeonato do mundo do futebol, é oportuno tecer algumas considerações sobre o comportamento da equipa portuguesa. Ele tem aspectos positivos: chegámos aos oitavos de final só perdemos com o campeão do mundo, pela difernça minima , com um golo evidentemente irregular e, de um modo geral a equipa portou-se bem.
Mas tambem tem aspectos muito negativos: só num jogo marcámos todos os nossos golos e contra a equipa mais fraca, ficando a zero em todos os outros, a gestão do “team” nos outros jogos foi pouco inteligente, tivemos casos pouco ou nada esclarecidos como o impedimento de Nani e o afastamento de Deco, deu-se a Ronaldo uma missão impossivel,deixando-o sòzinho,sem nimguem que o servisse nem a quem ele pudesse servir, mas que ele cumpriu com toda a honestidade secando,na sua cobertura, 2 ou 3 adversários, o que permitia libertar outros tantos companheiros para tentarem o ataque e a vitória, só que tal quási nunca aconteceu porque a recomendação era não perder e não ousar ganhar; quando no jogo contra a Espanha um avançado ousou tentar ganhar foi imediatamente substituido; e não foi por estar programado, mas por ter ousado que a substituição se deu.
Esta idiosincrasia nacional, de que o treinador Queiroz é o evidente expoente ( e Mourinho o oposto) foi já comentada, em diversos tons, pela inteligencia nacional, em prosa e em verso, em narrativas e em textos filosóficos. Camões, Mendes Pinto , Nobre, Régio, Pessoa, Eça,Camilo , Sena,Saramago, José Gil,entre muitos outros, exploraram o tema ao infinito; mas de nada serviu, porque os nossos orgãos decisores são incultos, pouco lidos e incapazes de ligar o que lêem à prática. Escolher Queiroz era escolher o medo de ousar, o medo de perder,o jogo do vamos lá ver se nos safamos e se aguento o tacho e,simultaneamente, a certeza de um comportamento arrogante, acritico e autocrático. No jogo com a Coreia do Norte, e a equipa não é tão má como isso, a equipa portuguesa mostrou que e capaz de ganhar e de marcar golos,desde que não sujeita a um espartilho inibidor; porque é que, no jogo com o Brasil, quando já tinhamos a certeza de não ser desclassificados, não arriscámos e tentámos a vitória? Medo, só medo,
Um grande poeta português definiu espantosamente este estado de espirito. Foi Mário de Sá Carneiro e disse assim:
Um pouco mais de sol- eu era brasa
Um pouco mais de azul- eu era além
Para atingir faltou-me um golpe de asa
Se ao menos eu permanecesse aquém.
Mas aos holandeses , com um país tão pequeno quanto o nosso, não faltou o golpe de asa. Nós, nem aquem permanecemos.

Monday, November 9, 2009

CUI PRODEST

Já não vale a pena comentar ou sequer emitir opinião sobre a lamentável comunicação ao país produzida pelo Presidente da República a propósito da denúncia feita por um seu assessor de que o governo andava a espiar a dita presidência, com pedido de publicação, o que foi cumprido obedientemente pelo jornal Público, em 18 e 19 de Agosto passado, cujo director, felizmente, vai à vida; mas não se inquietem, leitores, porque vai para um lugar melhor e mais bem pago, só que mais inútil, como sempre acontece aos enfatuados topo de gama da inteligência deste país. Na verdade nenhum comentador, mesmo os mais fieis e estúpidos, deixou de achar aquilo uma parvoíce e um tiro no pé de S. Excia, e que mais valia ele ter ficado calado. Mas se o leitor quer ler sobre o assunto um comentário objectivo e justo leia o de Miguel Sousa Tavares no Expresso de 3 de Outubro, que era o que eu teria feito, se não estivesse já feito.

Enfim toda a gente percebeu que aquilo era uma inventona para tentar lixar o Sócrates, com a participação activa de assessores do PR.

Mas há um tema que ainda ninguém comentou. Para desviar atenções da questão central, o PR denunciou um grupo de deputados do PS que o teriam intimado a meter na ordem os seus assessores que tinham colaborado na elaboração do programa de governo do PSD; e isto com a negregada intenção de colar o PR ao PSD e de afastar as atenções do país dos problemas sérios que o afligem.

Quando estudei latim ensinaram-me um brocardo, cui prodest (a quem aproveita), como base de investigação de qualquer evento de origem desconhecida. O principio tornou-se fundamental na investigação criminal e foi glosado em todos os tons pelos autores de romances policiais, desde o S. S. Van Dyne, passando pelo Ellery Queen, Agatha Christie até ao Stanley Gardner: A quem aproveita o crime Descoberto o beneficiário estamos a dois passos de descobrir o criminoso.

Ora que raio de proveito podia tirar o governo, o PS ou José Sócrates de uma colagem do PR ao PSD ou à Ferreira Leite. Em principio tal colagem só poderia aumentar a base de apoio do PSD e, portanto, as hipóteses remotas de o PSD ganhr as eleições. De facto este argumento do PR é mais uma estupidez das muitas que enxameiam aquela malfadada comunicação ao país

Mas já agora temos de fazer um ultimato ao PR: Se, na verdade foram assessores seus que fizeram aquela porcaria de programa do PSD, despeça-os já! Eles são incompetentes , ignorantes e nada percebem dos problemas do país,

E VÃO TRÊS - Nº 2-- A FORMAÇÃO

A formação foi a outra vertente em que foram desbaratados os dinheiros da União Europeia ( UE ), mas estes de forma escandalosa. Ninguém estava preparado, em Portugal, para combater a fraude à lei da concessão dos subsídios, embora tivesse sido publicada uma lei que criminalizava o desvio de subsidio. A PJ, sem meios e sem experiência, procurou informar-se, junto das autoridades administrativas, do quadro das possíveis fraudes, mas estas, ainda mais ignorantes,muitas vezes induziam as próprias policias em erro, contribuindo assim para a absolvição de muitos réus, por deficiência de instrução. Só um exemplo, entre muitos: A certa altura começou a aparecer em algumas acusações do Ministério Público uma asserção em que depois assentava todo o delito de que era acusado o arguido. Tratava-se de este, gerente de uma empresa beneficiária de um subsidio para formação, ter dado formação aos seus próprios empregados, o que seria ilegal (nunca se dizia qual a lei infringida, pela simples razão que não havia, nem podia haver). Assim quem tivesse dado formação aos seus empregados caía em desvio de subsidio e devia ser condenado, por tal crime. Por trás disto, escondia-se a suspeita pela PJ, aliás correcta, de que, sob a capa de subsídios de formação se estavam a pagar salários para o funcionamento normal e produtivo da empresa. Mas se a suspeita era correcta e fundada, a tese com que se procurava fundamentá-la era totalmente absurda. Pois para que quereriam as empresas dar formação aos empregados de outras firmas, se, em principio, nada ganhavam com as acções de formação, antes ainda deviam dispender com os seus custos, pelo menos 10 ou 20% dos mesmos. Só se fosse para tornar essas firmas mais competentes e produtivas, pela reclassificação da mão de obra, batendo assim em competitividade a própria firma que dava a formação. Enfim um disparate! Mas porquê insistiam, a PJ e o MP naquele anacronismo? Foi num julgamento em Ovar que o mistério se descobriu. Estava sendo ouvida como testemunha de acusação uma senhora, directora do DAFSE. A certa altura um advogado de defesa perguntou-lhe se ela achava que as empresas não podiam dar formação aos seus próprios empregados. Ela respondeu que sim , que podiam e logo desatou num choro compulsivo. Perguntada pelo juiz qual a razão de tal choro esclareceu que se achava responsável pelo disparate que aparecia em todas as acusações crime; fora o caso que uma brigada da PJ se deslocara ao DAFSE para obter informações sobre os procedimentos de instrução dos processos de candidatura, para melhor orientarem as suas investigações. No decurso desse "briefing" ela prestara a informação, errada, de que, pelos regulamentos, era absolutamente vedado às empresas dar formação aos seus próprios empregados. Só mais tarde se apercebera de que a sua informação era errada, mas não tinha tido coragem para admitir aquele erro e calara-se. Daí o seu choro e a sua vergonha! E tinha razão, porquanto já pelo menos um individuo tinha sido condenado com fundamento de ter dado formação subsidiada aos seus empregados.


A PJ transformou a verificação do facto, supostamente ilegal, em indicio seguro de ter havido desvio de subsidio e passou-o em relatório da instrução do processo ao MP, que, sem o menor espírito critico o introduziu na acusação, calmamente recebida pelos respectivos juízes. Claro que a directora do DAFSE não tinha razão para chorar tanto, porque depois dela tanto juízes, como Ministério Público como a própria PJ tinham obrigação de desmontar o erro e corrigi-lo. Claro que ele foi desmontado na maior parte dos julgamentos em que a acusação se baseava neste pressuposto, o que conduziu a sucessivas absolvições de indivíduos que, se a instrução dos processos tivesse seguido orientações mais correctas, poderiam ter sido condenados. Tais condenações teriam prevenido, talvez, o total desaforo e corrupção generalizada com que foi dispendida a verba enorme dos apoios comunitários à formação.

Mas isto também quer dizer que ninguém foi preparado para as dificuldades de absorção, com utilidade para o país, dos fundos comunitários; e esta responsabilidade cabe integralmente ao governo Cavaco Silva, que, com a sua inoperância, facilitou que dinheiros duplamente públicos fossem encher bolsos privados, sem qualquer reflexo de utilidade pública.

Além disso foi toda a panóplia de despesas ficticias, sobrefacturações e outros comportamentos ilegais que permitiram a muita gente, adepta do governo Cavaco Silva, adquirir carros topo de gama, comprar casas luxuosas e amassar fortunas indevidas. Mas formação, essa, não houve! Portugal e os portugueses perderam assim uma das melhores oportunidades de construir um futuro melhor e sustentável.

Mas não foi só nos subsidios às empresas que o descalabro, com a má aplicação dos fundos comunitários e do orçamento, se verificou. Os subsidios para a investigação, atribuídos a universidades e institutos superiores, tambem permitiram escandalosas operações. Quási podemos apostar que aquelas malfadadas torres negras que desfeiam o IST e a Alameda D. Afonso Henriques, têm nelas investido muito dinheiro desviado de fundos comunitários.

A insolvência do ITEC (uma associação ligada ao IST) permitiu a esta instituição universitária (em nome de uma associação por si controlada) comprar um prédio no centro de Lisboa e adquirir uma máquina que tinha custado cerca de 300.000 contos (pagos com fundos comunitários), tudo por preço vil (a maquina veio a ser comprada pelo IST por 10.000 contos, nova e nunca utilizada ).

Tudo isto beneficiou apenas os admnistradores e alguns especiais colaboradores do ITEC (os administradores ganhavam pingues vencimentos e ajudas de custos, por cima de outros que já tinham), pavoneavam-se em carros topo de gama e, como é dos livros, atiraram com a instituíção para a insolvência.Quando a administradora da insolvência abriu os olhos e se pronunciou, declarando que a mesma devia ser declarada fraudulenta, foi destituída.

A nova administradora fez logo um chorudo negócio: o único bem que sobrou do ITEC, foi um imóvel construído,em direito de superficie, no campus do INETI, no Lumiar. Tal imóvel foi avaliado pelas Finanças em €3.000.000; pois bem, o insolvente ITEC conseguiu vende-lo ao IAPMEI (organismo público) por 7 ou 9 milhões, o que vai permitir pagar mais alguns tostões a uns credores preferenciais.

Nunca nimguém foi preso nem judicialmente incomodado. Ah, esquecia-me: para permitir melhor esta e outras maningancias, o INETI, um dos poucos organismos públicos de investigação, foi extinto! Foi substituido na propriedade dos terrenos do campus do Lumiar, onde está construído o atrás referido imóvel doITEC, pelo IAPMEI; que não faz investigação nenhuma. Mas prevêm-se muitos outros negócios,com os terrenos que herdou sem pagar nada. Terrenos que não são só terrenos, mas também imóveis com destinos diversos (laboratórios, unidades de demonstração etc) e pelos quais vai agora passar a cobrar rendas das unidades operacionais que neles já trabalhavam, sem nada pagar porque eram suas proprietárias e agora já não são, por um golpe de mágica.

No tempo do governo cavaquista, o IAPMEI tinha duas fontes de rendimento absolutamente geniais. Uma, segundo um decreto-lei pequenino que nimguém leu, que lhe atribuia 3% dos subsidios concedidos, supõe-se que pelo trabalho de apreciação dos processos o qual óbviamente já estava pago pelo orçamento. Só que a Comunidade Europeia não esteve pelos ajustes e não considerou tal verba (incluída nos cálculos de custos de cada projecto) como relevante e recusou-se a pagá-la. Resultado , o Estado teve de devolver os 3% e como,claro, os cobrados já estavam gastos e ,quási sempre ,de forma sumptuária, quem pagou foi, de novo, o contribuinte.

A outra era mais sofisticada e permitia fugir a controlos orçamentais. Como entrava diáriamente muito dinheiro da Comunidade Europeia para os subsidios, bastava atrasar um bocadinho o pagamento dos mesmos para criar um fundo de maneio permanente que colocado num banco amigo podia gerar um juro baixito (o banco amigo tambem tinha que ganhar e assim obtinha um depósito permanente a juros de depósito à ordem), nunca superior a1%, que se transformou num magnífico saco azul, que nunca nimguem descobriu, sendo que todavia a PJ juntou cópias dos contratos com a banca a vários processos crime por desvio de subsidio. Mas jamais alguém investigou para onde ia o juro de tão estranho contrato.

Como se vê o dinheiro chovia como o maná.

Mas daí não resultou quási nada de bom para o país e seus cidadãos. Antes serviu para criar o monstro (o Estado gastador e incontinente), como mais tarde havia de admitir um dos ministros das finanças de então, o dr. Miguel Cadilhe.

Só o que não se admite é porque razão a rapaziada do PSD insiste em não querer incluir os 10 anos de governo de Cavaco Silva na lista dos governos que contribuiram para o país chegar à situação em que hoje está.