Wednesday, September 1, 2010

OS TRÊS JULGAMENTOS

O fim da guerra em Moçambique, apesar da recusa de Salazar em aceitar “os ventos da história”, trouxe profundas modificações politicas que afectaram a vida pacata de uma sociedade colonial, estratificada em camadas sociais bem distintas e facilmente identificáveis: os indígenas, reconhecíveis pela cor da pele, e os colonos. Superintendendo em tudo isto estava o aparelho colonial que via nas colónias o campo guardado, onde todas as actividades, fossem económicas, culturais ou sociais estavam sob o seu controlo.
Para se criar um cine clube em Lourenço Marques foi necessário por, inicialmente, à sua frente um homem do regime, o arquitecto Soeiro, todavia um espírito liberal e um apaixonado pelo cinema, cujo critério de escolha de filmes e de organização dos programas era mais amplo que os dos simpatizantes comunistas que, como de costume se perfilavam para controlar a organização, aproveitando-se do espírito democrático dos outros interessados e da solidariedade contra o regime, que nessa altura nos unia a todos. Note-se que entre os tais simpatizantes ou “compagnons de route “ havia verdadeiros espíritos de eleição que em muito contribuíram para o sucesso e desenvolvimento do cine clube que se transformou no mais importante de todos ( talvez pedindo meças com o do Porto) os que funcionavam no espaço sob administração portuguesa. O sr. Morais, o Jorge Pais, o Rui Baltazar e o Navarro,eram os mais destacados de um grupo a quem se ficou a dever a importância cultural do cine clube e a sua expansão que lhe aumentava a força e o prestigio, de tal modo que as entidades públicas, apesar de não lhes faltar vontade de acabar com aquele “cancro” cultural, não se atreviam, a não ser por via censórica, a meter-se com ele. O grupo acima referido tinha todavia um defeito: um mau sentido prático da vida. Quando assumiam, em bloco, com consentimento e apoio dos democratas que neles votavam, a direcção do cine-clube, começavam a fazer conferencias e debates, a que atribuíam grande valor mobilizador das massas ( compareciam meia dúzia de gatos, quáse todos lendo pela mesma cartilha) e descuravam as sessões. Eu bem lhes dizia que sem sessões não havia cine clube, porque os associados pelos 20 escudos mensais da quota queriam pelo menos, ver 3 filmes e diferentes dos programados pelos cinemas. O resultado era que as direcções deles acabavam sem dinheiro e sem filmes para exibir; depois elegiam-me a mim, para me passar a batata quente e para ver se resolvia o problema. Eu, todavia, fazia-me sempre acompanhar pelo Jorge Pais e pelo Morais, com cuja colaboração, indispensável, se podia sempre contar para safar o cine-clube.
De uma das vezes em que tal situação aconteceu, o cine-clube estava reduzido a uma centena de carolas que pagavam quotas, havia 3 meses que não dava sessões e não havia dinheiro para mandar cantar um cego. Lá reunimos e encontrámos duas soluções que talvez…talvez, resolvessem o problema. Uma era ir falar com o proprietário do cinema Gil Vicente, para ver se arranjávamos rapidamente uma sessão. Este era um homem que vivia do cinema, mas era também um apaixonado por ele e que via com bons olhos a existência do cine-clube que não considerava um concorrente mas antes uma entidade estimuladora do gosto pelo cinemaO pai dele, Manuel Rodrigues , tinha sido pioneiro da exibição comercial de cinema em Moçambique. Ele tinha um gosto apurado pelo cinema e distinguia muito bem um bom filme de um mau filme e um filme com sucesso comercial de outro que, embora bom, o não teria. Mas, dessa vez, recebeu-nos muito bem mas foi-nos dizendo que, de momento, não tinha nada em carteira que nos servisse e nos pudesse dispensar. De repente, porém, bateu com a palma da mão na testa e exclamou: Esperem, tenho aí um filme que é muito bom, mas que não vou exibir porque não dá para uma sessão, com uma assistência de meia dúzia. Vou devolve-lo, mas se o quiserem, têm que o exibir ainda esta semana,
Tratava-se dos 400 Golpes do Truffaut. Na altura, a “nouvelle vague” só era conhecida de meia dúzia de moçambicanos que liam revistas estranjeiras, mas esses eram nossos associados. Aceitámos logo a proposta e ele cedeu-nos um sábado de tarde, que era uma ocasião óptima. Mexemos todos os cordelinhos para anunciar a sessão nos jornais diários, publicámos artigos sobre o Truffault e a nouvelle vague e referencias ao filme e mandámos uma circular a todos os associados, sublinhando que era a única oportunidade de verem, em Moçambique, aquele filme que já tinha um lugar na história do cinema. No dia da exibição os 1100 lugares do Gil Vicente estavam esgotados e ainda havia umas dezenas de pessoas em pé ou sentadas nas escadas do balcão. No fim da sessão o proprietário do cinema, César Rodrigues veio ter comigo e disse-me: se fosse eu a levar o filme, tinha cá 20 ou 30 pessoas e não dava para o petróleo. Vocês, enchem-me a casa!
É certo, respondi eu, mas agora já pode levar todo o Truffault que vier aí, porque vai ter casa cheia.
Sorriu-se, mas levou a sério o que eu lhe disse, porque foi no Gil Vicente que vi o Truffault quási todo, incluindo esse incomparável Beijos Roubados, uma das mais fabulosas comédias da história do cinema. Só não levou o Jules e Jim, mas a história deste filme em Moçambique contá-la-ei noutra ocasião.
Com a sessão dos 400 Golpes, o cine clube arrebitou, mas era preciso mais um golpe para criar confiança nos associados e voltarmos aos 1600 a pagar quotas; era preciso avançarmos rapidamente para a 2ª alternativa da nossa estratégia,
Por esses tempos encontrava-se em Lourenço Marques o Zeca Afonso, já no auge da sua carreira, Fui falar com ele, amigos, que éramos, contei-lhe das desgraças do cineciube e pedi-lhe que preenchesse metade de uma sessão do cineclube, À borla, claro estava, mas disso nem se falou, porque era óbvio. Disse logo que sim, sem por condições e marcou-se a data.
A outra metade do programa era preenchida com um filme alemão, fornecido pelo consulado daquele país, do qual não tínhamos grandes referencias, mas já legendado em português e que se chamava, se a memória me não falha “ Wir Wunderkinder”, Era um filme espantoso que tratava do renascer da especulação imobiliária na Alemanha Ocidental do pós-guerra de 1939/45, As manobras e corrupção dos especuladores eram denunciadas por um jornalista que, em consequência, era perseguido, sofria atentados e era objecto de tentativas de corrupção que sempre rejeitava , O filme acaba com uma cena em que os especuladores vão visitar o jornalista num andar elevado de um prédio . ainda em construção para tentar convence-lo a não publicar um artigo que os vai prejudicar, Sobem, para isso, num elevador que funciona, Perante a recusa do jornalista saem desvairados ,jurando vinganças, e enfiam na primeira porta de elevador que encontram; mas, atrás desta não há elevador, só buraco e eles estatelam-se dezenas de pisos abaixo, definitivamente mortos, Um filme destes, com este final, depois de uma sessão com o Zeca Afonso onde se cantou a Grândola e os Vampiros acabou como só podia acabar: uma sala cheia, a abarrotar que já antes tinha aplaudido freneticamente o Zeca, rompeu numa generalizada salva de palmas, demonstrando que era gente pacifica mas detestando prepotências e atentados à liberdade.
A sessão foi um sucesso; a sala estava cheia e entornava pelas costuras. O cineclube estabeleceu que cada associado devia pagar 3 quotas atrasadas. Muitos pagaram o ano inteiro só para verem e ouvirem o Zeca, Este foi aplaudido de pé, no fim de cada canção e obrigado a voltar ao palco e a cantar de novo várias vezes. Houve quem propusesse que continuasse o Zeca e não se exibisse o filme( mas depois gostaram dele ), O cineclube libertou~se da miséria e poude continuar com as suas missões que não eram apenas exibir filmes, mas também elaborar programas de qualidade, publicar uma revista ( a OBJECTIVA ), impulsionar o cinema amador e organizar concursos, promover sessões de cinema nos subúrbios, para crianças africanas que nunca tinham visto cinema e que deliravam com o Charlot, o Buster Keaton, o Bucha e Estica, as quais eram cada vez mais concorridas e para as quais se preparava o salto de fazer sessões especiais para crianças nos cinemas da cidade de betão.Este era o sonho do Sr Morais que, quási todos os fins de semana, se deslocava para os subúrbios, com uma velha máquina de 16 mm. às costas, para dar às crianças negras, mistas, amarelas ou brancas uma lição de democracia e de bom cinema.
Era um fervilhar cultural que se desenvolvia em Moçambique, apesar da censura, da policia politica, da prepotência fascisante de muitos poderes públicos, contra os quais lutavam o cineclube, o” Teatro de Amadores de Lourenço Marques”(TALM), com, entre outros, o Mário Barradas a encenar, o Núcleo de Arte, a Sociedade de Estudos, o Itinerário, a Voz de Moçambique, a Tribuna, por vezes O Brado Africano, a Associação dos Naturais e a Associação Africana (apesar das perseguições policiais), o Bispo da Beira, D. Soares de Resende e, depois, D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula-Em tudo isto trabalhavam,gratuitamente, intelectuais, curiosos interessados, todos unidos na luta pelo desenvolvimento de uma cultura moçambicana, para eles necessário porque, fossem quais fossem as suas convicções politicas uma certeza era comum a todos eles: Moçambique não podia, por muito mais tempo, continuar a ser uma colónia.

1 comment:

Paulo Rato said...

É uma (com certeza de entre muitas outras) estória curiosa e com significado, que com coisas destas, de maior ou menor dimensão, nos fizemos nós, talvez de duas, três gerações, se fizeram países, se fez uma parte da História.
Foi bom lê-la, como é bom reencontrá-lo (porque só hoje o descobri), nesta "rede" menos habitada do que apregoam certos vendedores de ilusões: porque há quem simplesmente a atravanque, sem peso, sem conteúdo, sem rasto.
O Adrião tem tudo o que lhes falta, pertence ao bairro, é um "vecino", como dizem os castelhanos.
Já deitei o olho a umas "coisinhas", para trás. Mas é impossível chegar a tudo... Aliás, não frequento muitos blogues, senão a quantidade destrói a qualidade (que também não se encontra com a frequência desejada).
Um forte e afectuoso abraço. E, sem minimizar a opinião, a análise, o comentário, que venham mais estórias!
Paulo Rato